sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

OU UM ESTADO PALESTINO OU O CAOS

Ou de como os Estados Unidos assistem ao último suspiro de seus vassalos no Oriente Médio

Tunísia, Líbano, Egito estão finalmente a caminho de sua emancipação. E os Estados Unidos nada podem fazer porque precisam garantir a Arábia Saudita e os emirados (petróleo), o Paquistão(nuclear) e Israel, que tem feito da vassalagem a razão de sua existência.

Do Iraque e Afeganistão eles praticamente já desistiram ( depois naturalmente de se apossar de suas riquezas), pois já não conseguem mais deter os mercenários que para ali enviaram. São esses mercenários que andam cometendo atos de terrorismo ora contra os sunitas ora contra os xiitas.


Se o povo da Tunísia encontrar o seu norte, levará como ele, num primeiro momento, a Argélia, a Líbia e o Marrocos.


O mesmo pode se dizer do Egito, para desespero de Israel, cujos governantes continuam cegos e arrogantes.


O que os Estados Unidos e o Ocidente não entendem é que enquanto não for criado o Estado Palestino, o Oriente Médio continuará em efervescência.


Sejam quais forem os ditadores, reis e emires de plantão.


Ou a Palestina ou o caos.

DO BLOG DO BOURDOUKAN

sábado, 15 de janeiro de 2011

MIGUEL NICOLELIS/ENTREVISTA PRECIOSA

Integração entre cérebro e
máquina influencia evolução






*Sexto sentido: vamos comandar máquinas com o pensamento


*Tetraplégico andar: dinheiro para projeto é de uma viagem à Lua


*Um dia, o cara acordará e verá que não pertence à espécie dos pais


*Talento brasileiro é sufocado por normas absurdas nas universidades


*Aqui, glória é administrar o CNPq; não administram nem suas casas


*Investimos 1,3% do PIB em C&T. Japão, 4%: “Explica muita coisa.”


*Apoiou Dilma, a opção “era trágica” – “basta olhar São Paulo”


*Mercadante na C&T: “Estou curioso para conhecer seu currículo.”

Edição de Mylton Severiano


Para o neurocientista Miguel Nicolelis, o corpo não vai mais limitar a “ação” da mente. Ele é um dos pesquisadores brasileiros de maior prestígio internacional e acaba de dar instigante entrevista ao Estadão (quando Nicolelis não é instigante?).


Suas descobertas já apareciam na lista das dez tecnologias que devem mudar o mundo, divulgada em 2001 pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Em 2009, pela primeira vez um brasileiro vai para a capa da revista Science. Foi há pouco nomeado membro da Pontifícia Academia de Ciências, no Vaticano – ele que numa entrevista pioneira no Brasil para Caros Amigos, quando eu era editor da revista, em maio de 2008, declarou ao perguntarmos se acreditava em Deus:
“Não. O único Divino que eu acredito é o Ademir da Guia [craque do Palmeiras entre 1960/70 apelidado de Divino pela crônica esportiva]. Aliás, tenho uma ótima relação com Deus: ele não acredita em mim e eu não acredito nele.”
Criticou a gestão científica no País, especialmente em São Paulo. E questionou os critérios – políticos – para a escolha do ministro da Ciência & Tecnologia, Aloizio Mercadante. Vamos à entrevista concedida a Alexandre Gonçalves e enviada pelo colega Paulo Campanario, demógrafo e sociólogo.
“Sobre doenças do cérebro, proponho uma teoria que vai acabar com minha carreira” (risos)
Para onde a neurociência deve nos levar nos próximos anos?
No curto prazo, penso que as principais aplicações serão na medicina com novos métodos de reabilitação neurológica, para tratar condições como paralisia. No médio, chegarão as aplicações computacionais. Nossa relação com as máquinas será completamente diferente: não usaremos mais teclados, monitores, mause. O computador convencional deixará de existir. Vamos submergir em sistemas virtuais e nos comunicaremos diretamente com eles. No longo prazo, o corpo deixará de ser o fator limitante da nossa ação no mundo. Nossa mente poderá atuar com máquinas que estão à distância e operar dispositivos de proporções nanométricas ou gigantescas: de uma nave espacial a uma ferramenta que penetra no espaço entre duas células para corrigir um defeito. E, no longuíssimo prazo, a evolução humana vai se acelerar. Nosso cérebro roubará um pouco o controle que os genes têm hoje. Daqui a três meses, publicarei um livro em que comento estes temas.


O que você chama de curto, médio, longo e longuíssimo prazo?


Curto prazo são os próximos anos. Médio prazo, nas próximas duas décadas. Longo prazo, no próximo século. Longuíssimo prazo, alguns milhares de anos.


Como andam suas linhas de pesquisa na medicina?


Estamos avançando rapidamente no exoesqueleto (um dispositivo que dá sustentação ao corpo de uma pessoa paralisada e é capaz de mover-se obedecendo ao controle da mente). Está sendo desenvolvido na Alemanha. Para o treinamento dos pacientes, construímos salas virtuais onde pessoas paralisadas terão sua atividade cerebral registrada de forma não-invasiva por magneto-encefalógrafos. Vamos ver se elas aprendem a controlar com o pensamento os movimentos de um corpo virtual – um avatar que simula o exoesqueleto. Com uma pessoa tetraplégica será mais fácil, pois é justificável o uso de métodos invasivos como implantar os eletrodos dois milímetros e meio dentro do cérebro. As descobertas vitais já foram feitas.


Nosso drama agora é engenharia e conseguir recursos para pagar um projeto que é o equivalente, na neurociência, a uma viagem à Lua.


Outra linha de pesquisa importante em medicina é Parkinson. No ano passado, publicamos um trabalho na Science. Estimulamos com eletricidade a medula espinhal de ratos com Parkinson e conseguimos reverter o congelamento motor característico da doença. Há um milhão de fibras na medula espinhal que sobem para o cérebro. Mandamos uma descarga de alta frequência que chega aos centros motores profundos do cérebro e faz com que eles saiam da sincronia absoluta característica da doença, pois estão todos disparando impulsos nervosos ao mesmo tempo, de um modo semelhante ao que ocorre em uma crise epiléptica. O sinal elétrico tem um efeito caótico que quebra a crise. Também temos resultados preliminares em macacos obtidos aqui em Natal.


Infelizmente, o Hospital Sírio-Libanês não quer continuar a parceria com nosso instituto. Por isso, procuramos outro hospital de grande porte, público ou privado, onde possamos realizar os testes clínicos, talvez já no próximo ano. Gostaria muito de marcar que a tradução dessa pesquisa para a prática clínica aconteceu aqui no Brasil, pois acredito que a Medicina brasileira é a melhor do mundo. Estou propondo uma nova teoria que vai provavelmente acabar com minha carreira (risos). Acredito que não há distinção entre doenças neurológicas e psiquiátricas: todas elas são doenças temporais, relacionadas ao tempo dos neurônios, ou seja, variantes epilépticas. A única doença do cérebro que existe realmente seria uma epilepsia. Já publicamos três trabalhos este ano com modelos de doenças ditas psiquiátricas e, em todas, encontramos uma assinatura temporal que permite classificá-las como distúrbios do tempo, epilépticos. A ideia surgiu quando vi os registros eletrofisiológicos de ratos com Parkinson e eles lembraram muito os registros de uma crise epiléptica central que conheci quando era estudante.


“Nossa política científica está ultrapassada, não podemos mais fazer pesquisa de forma amadora”


No médio prazo, ainda precisaremos dos nossos sentidos para dialogar com sistemas computacionais?


Em breve, vamos publicar um trabalho descrevendo o envio do sinal de uma máquina diretamente ao tecido neural de um animal, sem mediação dos sentidos: na prática, criamos um sexto sentido. Vai ser uma novidade explosiva, mas não posso dar mais detalhes, pois o artigo ainda não foi publicado. A internet como conhecemos vai desaparecer. Teremos uma verdadeira rede cerebral. A comunicação não será mediada pela linguagem, que deixará de ser o principal canal de comunicação. Para entender isso, basta pensar que toda linguagem é um comportamento motor – como mexer o braço. Esse comportamento motor também poderá ser decodificado e transmitido.


Grandes empresas – como Google, Intel, Microsoft – já têm suas divisões de interface cérebro-máquina.

Quais as implicações antropológicas e sociológicas no longo prazo?


Talvez o primeiro impacto será descobrir que somos todos muito parecidos: as pretensas diferenças entre grupos de seres humanos vão se reduzir pois todos perceberão que somos iguais. Costumo dizer que será a verdadeira libertação da mente do corpo, porque será ela quem determinará nosso alcance e potencial de ação na natureza. O corpo permanecerá para manter a mente viva, mas não precisará atuar fisicamente. Nossa mente cria as ferramentas e as absorve como extensão do nosso corpo. Agora, a mente vai controlar diretamente as ferramentas. O que definimos como ser mudará drasticamente no próximo século.


De que modo a evolução poderá ser influenciada pelo cérebro?


O processo de seleção natural vai agir de uma forma muito mais rápida. Em um mundo onde as pessoas terão de atuar com a atenção dividida entre múltiplas ferramentas, os atributos evolucionais necessários para sobreviver mudam. A mente que consegue controlar vários processos de forma eficaz tem uma vantagem evolucional sobre as outras. Há uma base genética para essa facilidade. À medida que gente com essa vantagem se reproduz mais que os outros, ocorre seleção. Várias pessoas – como os biólogos evolucionistas Richard Dawkins e Stephen Jay Gould – previram que o cérebro passaria a ter um papel mais fundamental na evolução. Mas creio que estamos acelerando este papel. Os neandertais acordaram um dia e encontraram o Homo sapiens jogando bola na esquina da casa deles. Um dia, um sujeito pode acordar e se dar conta de que ele já não pertence mais à espécie dos pais. Mas estamos falando de milênios aqui.


Sua abordagem para criar uma interface cérebro-máquina foi listada pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) como uma das dez tecnologias que vão mudar o mundo. Como ela surgiu?


Nós – eu e o neurocientista John Chapin – elaboramos um experimento para contestar a doutrina neuronal dominante no século 20 – que rendeu vários prêmios Nobel. Esta teoria estabelecia o neurônio como unidade funcional do sistema nervoso. Nós provamos que a unidade funcional é uma população de células. Um neurônio isolado – que sozinho constitui, de fato, uma unidade anatômica e computacional – não consegue reunir informação suficiente para gerar comportamento, principal função do cérebro. No fim da década de 1980, tivemos a ideia de ligar um cérebro de rato a um robô para mostrar que mesmo o neurônio mais fenomenal não gera movimento. Mas, quando registrávamos populações de cinquenta neurônios – mesmo escolhendo-os de forma aleatória –, o animal conseguia movimentar o braço mecânico como se fosse o seu próprio. Não esperávamos um impacto tão grande. Construímos o primeiro centro de neuroengenharia do mundo na Universidade Duke. Agora, qualquer oficina de fundo de quintal nos Estados Unidos tem um centro de neuroengenharia. Há uma explosão de iniciativas no mundo inteiro: Japão, Suíça, Brasil.
Quais os principais desafios para aprimorar essa tecnologia?


Conseguimos registrar hoje cerca de 600 neurônios. Nos próximos dois anos, vamos chegar a 60 mil graças a uma inovadora tecnologia de eletrodos tridimensionais. De qualquer forma, é um método invasivo, o que restringe seu uso. Ninguém vai inserir eletrodos no cérebro para brincar com jogos na internet. Precisamos descobrir técnicas não-invasivas, mas que tenham a mesma resolução para registrar os neurônios.


O que é "registrar neurônios"?


Colocamos eletrodos no cérebro e registramos a atividade elétrica dos neurônios. Se você colocar os dados obtidos pelos eletrodos em uma tela de computador, não vai entender nada. É como olhar um programa binário de computador. Há uma mensagem codificada ali, mas com um código que está mudando continuamente, pois o cérebro é um sistema autoadaptativo: cada vez que você faz alguma coisa, ele muda. Precisávamos descobrir um modo de extrair a informação motora dessas salvas de eletricidade que são, na realidade, padrões espaço-temporais que variam com o tempo. De início, parecia ruído, em boa medida porque é mesmo ruído Poisson, como costumamos chamar. Mas percebemos que, com métodos de regressão linear, conseguíamos obter a informação. A partir daí, deixamos o próprio cérebro atuar como nosso computador: ele resolvia o sistema de equações lineares e encontrava um equilíbrio ótimo que aproveitávamos para estabelecer a interface.


O que você acha da política científica brasileira?


Está ultrapassada. Principalmente, a gestão científica. Foi por isso que eu escrevi o Manifesto da Ciência Tropical (publicado em primeira mão no blog Viomundo). O mais importante nós temos: o talento humano. Mas ele é rapidamente sufocado por normas absurdas dentro das universidades.


Não podemos mais fazer pesquisa de forma amadora. Devemos ter uma carreira para pesquisadores em tempo integral e oferecer um suporte administrativo profissional aos cientistas.


Visitei um dos melhores institutos de física do País, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e o pessoal não tem suporte nenhum. Se um americano do Instituto de Física da Universidade Duke visitar os pesquisadores brasileiros, não vai acreditar. Eles tomam conta do auditório, fazem os cheques e compram as coisas, porque não é permitido ter gestores científicos com formação específica para este trabalho. Nós preferimos tirar cientistas que despontaram da academia. Aqui no Brasil há a cultura de que, subindo na carreira científica, o último passo de glória é virar um administrador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) ou da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). É uma tragédia. Esses caras não têm formação para administrar nada. Nem a casa deles. Não temos quadros de gestores. A gente gasta muito dinheiro e presta muita atenção em besteira e não investe naquilo que é fundamental.
Absurdo anticorpos apodrecer por causa da burocracia. Alguém precisa dizer: “Chega!”


Qual é a diferença nos mecanismos de financiamento e gestão científica nos EUA e no Brasil?


O investimento privado e público americano – sem contar os gastos do Pentágono que, em parte, são sigilosos – é equiparável: cerca de US$ 250 bilhões anuais cada um (o equivalente a R$ 425 bilhões). Eles também enfrentam o problema de que as empresas privadas não costumam investir em pesquisa pura, meio de cultura de onde saem as ideias aplicadas. Contudo, o governo não investe só em universidades. Ele também coloca dinheiro em empresas e em institutos de pesquisa privados. Este é o segredo.


No Brasil, a grande maioria dos mecanismos públicos de financiamento está voltado para universidades públicas. Sendo assim, você não contrata cientistas e técnicos para um projeto, pois depende dos quadros da universidade. Mas esses quadros estão dando 300 horas de aula por semestre. Não dá para competir com um chinês que está em Berkeley pesquisando o dia inteiro e recebendo milhões de dólares para contratar quem ele quiser. Como fazer ciência sem gente?


Na realidade, os americanos não contam com pessoas mais capazes lá. O que eles têm de diferente é um número muito maior de pesquisadores, processos eficientes, gestão científica profissional – a melhor jamais inventada – e dinheiro. Nos Estados Unidos, sou visto como um pequeno empreendedor. Recebo dinheiro do governo americano e uma parcela menor de investimento privado. Tenho assim uma “padaria” que faz ciência: posso contratar o padeiro, o faxineiro e a atendente de acordo com as necessidades do projeto. Esse empreendedorismo não é permitido pelas leis brasileiras. As mesmas regras que regem o gasto de quaisquer dez mil réis que um cientista ganha do governo federal servem para controlar licitações de centenas de milhões de reais para a construção de estradas, hidrelétricas. Achar que um cientista vai desviar dinheiro para fazer fortuna pessoal é absurdo. O processo de financiamento deve ser mais aberto, com mecanismos simples de auditoria. Além disso, deveria ser mais fácil importar insumos e, com o tempo, precisaríamos atrair empresas para produzi-los aqui. É um absurdo ver anticorpos apodrecer no aeroporto de Guarulhos por causa da burocracia. Alguém no topo da pirâmide – o presidente da República ou o ministro da Ciência e Tecnologia – precisa dizer:


“Chega! Acabou a brincadeira.”

“Não precisamos mais de caciques. Precisamos
de índios. Investir na massificação dos talentos.”


É um desperdício gigantesco de talento e de dinheiro. A China está recuperando pesquisadores que emigraram para os EUA oferecendo condições de trabalho ainda melhores que as americanas. Milhares de brasileiros voltariam ao Brasil se tivessem melhores condições para trabalhar. Mas o sujeito vem para uma universidade federal e é obrigado a dar 300 horas de aula por semestre. Perdemos o talento. Além disso, ele conquista a estabilidade de forma quase automática. Que motivação vai ter para crescer? Há talentos, mas os processos são medievais. E o cientista brasileiro tem muito receio de bater de frente com as autoridades para reivindicar o que ele realmente precisa.


Quanto o Brasil deveria investir em ciência?


O Brasil precisa investir de 4% a 5% do seu Produto Interno Bruto (PIB) em ciência e tecnologia para encarar a China, a Índia, a Rússia, os Estados Unidos, a Coreia do Sul. Esses são os jogadores com quem devemos nos equiparar. É o mesmo percentual que já investimos em educação. É essencial realizar os dois investimentos: por um lado, para formar gente e iniciar a revolução educacional que o País precisa; por outro, para usar o potencial intelectual dessas pessoas na produção de algo para o País. Atualmente, investimos 1,3% do PIB. No Japão, é quase 4%. Isso explica muita coisa.

Você afirmou diversas vezes que a ciência precisa ser democratizada no País.


Sem dúvida. É uma atividade extremamente elitizada. Não temos a penetração popular adequada nas universidades. Quantos doutores são índios ou negros? A ciência deve ir ao encontro da sociedade brasileira. Essa foi uma das razões que me motivaram a escrever o manifesto. Até bem pouco tempo, a ciência era uma atividade da aristocracia brasileira. Há 30 ou 40 anos só a classe mais alta tinha acesso à universidade. Não precisavam de financiamento porque tinham dinheiro próprio.


Hoje, nós precisamos de cientista que joga futebol na praia de Boa Viagem. Precisamos do moleque que está na escola pública. As crianças precisam ter acesso à educação científica, à iniciação científica. O que também implica uma democratização na distribuição de oportunidades e recursos em todo o País. Estamos trabalhando com 21 crianças da periferia de Natal. Elas nem mesmo entraram no ensino médio e já estão sendo incorporadas às linhas de produção de ciência do nosso instituto. Quatro participaram de um projeto-piloto em que aprenderam a usar ressonância nuclear magnética de bancada para medir o volume de óleo nas sementes do pinhão-manso do semi-árido nordestino. E classificaram as diferentes sementes de acordo com a quantidade de óleo. Duvido que exista algum técnico na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) melhor do que essas crianças.


Não precisamos mais de caciques. Precisamos de índios. Devemos investir na massificação dos talentos. Esses moleques vão decidir o que vai ser a nossa ciência. Se chega um jovem muito talentoso que quer investigar besouro, devemos responder:


“Está bom, filho. Vai pesquisar besouro.”


Eu não investiria em tópicos, em áreas específicas. Eu investiria primordialmente em gente. Porque se você investir em pessoas talentosas, elas encontrarão nichos em que o Brasil terá benefícios tremendos. Nós temos uma das maiores olimpíadas de matemática do mundo, o que comprova que nosso talento matemático é enorme. Mas não dá frutos porque faltam caminhos, oportunidades, veículos. Acreditamos que devemos escolher o melhor menino. Mas e os outros cem mil que quase ganharam? Precisam de incentivo para continuar. Por isso, eu proponho o bolsa-ciência. É um bolsa-família para garoto que tem talento científico. Não precisa ser gênio. Estou fazendo isso com esses 21 meninos. Os quatro garotos do pinhão-manso recebem mais dinheiro do que o pai e a mãe: uma bolsa de R$ 520 paga por doadores privados. Precisamos investir no caos que é o sistema nervoso. Desta forma, encontraremos caminhos imprevistos, surpresas agradáveis.


“Em vez de dar dinheiro para os bons, pulverizam; é preciso escolher os bons, não os pernas-de-pau”


Como avaliar mérito na academia?


Nós publicamos mais do que a Suíça. Mas o impacto da ciência suíça é muito maior. Basta ver o número de prêmios Nobel lá. E eles têm apenas cinco milhões de habitantes. Na academia brasileira, as recompensas dependem do que eu chamo de “índice gravitacional de publicação”: quanto mais pesado o currículo, melhor. Ou seja, o cientista precisa colecionar o maior número de publicações – sem importar tanto seu conteúdo. Não pode ser assim. O mérito tem de ser julgado pelo impacto nacional ou internacional de uma pesquisa.


Não podemos dizer: quem publica mais, leva o bolo. Porque aí o sujeito começa a publicar em qualquer revista. Não é difícil. A publicação científica é um negócio como qualquer outro. Mesmo se você considerar as revistas de maior impacto. Também não adianta criar e usar um índice numérico de citações (que mede o número de citações dos artigos de determinado cientista).


Talento não está no número de citações: é imponderável. Meu departamento na Universidade Duke nunca pediu meu índice de citação. Também nunca calculei. Quando saí do Brasil, achei que estava deixando um mundo de lordes da ciência. Fui perguntando nome por nome lá fora. Ninguém conhecia. Ninguém sabia quem era. Críamos uma bolha provinciana que deve ser estourada agora se o Brasil quer dar um salto quântico. Mas as pessoas têm receio de falar com medo de perder o financiamento. Há outras formas de medir o impacto científico: ver o que cara está fazendo e consultar a opinião de pessoas que importam no mundo, dos líderes de cada área. Sob este ponto de vista, o impacto da ciência brasileira é muito baixo. E precisamos dizer isso sem medo. Não dá para esconder o sol com a peneira.


Quando decidem criar um Instituto Nacional (de Ciência e Tecnologia), em vez de dividir o dinheiro entre 30 ou 40 pesquisadores promissores, preferem pulverizar o dinheiro entre 120 cientistas, muitos deles com propostas que não vão chegar a lugar nenhum. Cada um recebe um R$ 1 milhão, uma quantia considerável na opinião de muita gente mas que não paga nem a conta de luz de um projeto bem feito. Não podemos ter receio de selecionar os melhores. Você precisa escolher os bons jogadores, não os pernas-de-pau.


Outra coisa: só o Brasil ainda admite cientista por concurso público. Cientista tem de ser admitido por mérito, por julgamento de pares, por entrevista, por compromisso, por plano de trabalho.


“Na reunião passam minutos nomeando a mesa:
é coisa de cartório português da Idade Média”


Como você se vê na Academia?


Sou um pária. Não tenho o menor receio de falar isso. Sou tolerado. Ninguém chega para mim de frente e fala qualquer coisa. Mas, nos bastidores, é inacreditável a sabotagem de que fomos vítimas aqui em Natal nos últimos oito anos. Mas sobrevivemos. O Brasil é uma obsessão para mim. Há muita gente que não faz e não quer que ninguém faça, pois o status quo está bem.


Tenho excelentes amigos na academia do País, respeito profundamente a ciência brasileira. Sou cria de um dos fundadores da neurociência no Brasil, o professor César TimoIaria, e neto científico de um prêmio Nobel argentino, Bernardo Alberto Houssay.


Por isso, foi uma triste surpresa os anticorpos que perdi quando eu voltei. Algumas pessoas ficaram ofendidas porque não fiz o beija-mão pedindo permissão para fazer ciência na periferia de Natal. Este ano, na avaliação dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs), tivemos um dos melhores pareceres técnicos da área de biomedicina. E o nosso orçamento foi misteriosamente cortado em 75%. Pedi R$ 7 milhões. Recebemos R$ 1,5 milhão. Operamos com um sexto do nosso orçamento. As pessoas têm medo de abrir a boca, porque você é engolido pelos pares. Então, eu fico imaginando um pesquisador que volta para o Brasil depois de estudar lá fora. De qualquer forma, o pessoal precisa entender que voltar para o Brasil é assumir um tipo especial de compromisso. Não é ir para Harvard, Yale. Você deve estar disposto a dar seu quinhão para o País porque ele ainda está em construção.


Nem tudo vai funcionar como a gente quer. Vejo muita gente egoísta voltando para o Brasil. Os jovens precisam olhar menos para o umbigo e mais para a sociedade.


Qual é o futuro dos jovens pesquisadores no País?


Atualmente, eles têm uma dificuldade tremenda de conseguir dinheiro porque não são pesquisadores 1A do CNPq. Você precisa ser um cardeal da academia para conseguir dinheiro e sobressair. Com um físico da UFPE, cheguei à conclusão de que Albert Einstein não seria pesquisador 1A do CNPq, porque ele não preenche todos os pré-requisitos – número de orientandos de mestrado, de doutorado. Se Einstein não poderia estar no topo, há algo errado. Minha esperança é que o futuro ministro ataque isso de frente pois, até agora, ninguém teve coragem de bater de frente com o establishment da ciência brasileira. Ninguém teve coragem de chegar lá e dizer:


“Chega! Não é assim! A ciência não está devolvendo ao povo brasileiro o investimento do povo na ciência.”

Os cientistas brilhantes jovens não têm acesso às benesses que os grandes cardeais – pesquisadores A1 do CNPq – têm, muitos deles sem ter feito muita coisa que valha. Além disso, veja a situação do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CCT, que assessora o presidente da República nas decisões relacionadas à política científica). O presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC) – agora, um grande matemático – me perdoe, mas ele não deveria ter cadeira cativa nesse conselho. O Brasil deveria ter um conselho de gente que está fazendo ciência mundo afora. E não pessoas que ocupam cargos burocráticos em associações de classe. Deveria ser gente com impacto no mundo. E pessoas jovens com a cabeça aberta. Mas as pessoas têm muita dificuldade de quebrar esses rituais.


Para entender a que me refiro, basta participar de reuniões científicas e acompanhar a composição de uma mesa. Não há nada semelhante em lugar nenhum do mundo: perder três minutos anunciando autoridades e nomeando quem está na mesa. É coisa de cartório português da Idade Média. Cientista é um cidadão comum. Ele não tem de fazer toda essa firula para apresentar o que está fazendo. É um desperdício de energia, uma pompa completamente desnecessária.


Muitas vezes, os pesquisadores jovens não podem abrir a boca diante dos cientistas mais velhos. Eu ouço isso em todo o Brasil. No meu departamento nos Estados Unidos, sou professor titular há quase doze anos. Minha voz não vale mais que a de qualquer outro que acabou de chegar. Qualquer um pode me interpelar a qualquer momento. Qualquer um pode reclamar de qualquer coisa. Qualquer um pode fazer qualquer pergunta. E ninguém me chama de professor Nicolelis. Meu nome lá é Miguel. Por quê? Porque o cientista é algo comum na sociedade. O meu estado (a Carolina do Norte) possui uma das maiores densidades de PhD na população dos EUA. Se você se comportar como um pavão lá, vai se dar mal. Todo o mundo tem pelo menos um PhD.


Aqui, precisamos colocar a molecada da periferia de Natal, de Rio Branco e de Macapá na ABC, por mérito. Às vezes, parece que existe uma igreja chamada Ciência no País. Se você não é um membro certificado, ela é impenetrável.


Minhas críticas não são pessoais. Quero que o Brasil seja uma potência científica para o bem da humanidade. As pessoas precisam ver que a juventude científica brasileira está de mãos atadas. Precisamos libertar este povo. Já estou no terço final da minha carreira científica. O que me resta é ajudar essa molecada a fazer o melhor.


“Apoiei e apoio incondicionalmente Lula porque vivemos o melhor momento da história do País”


Você tem uma opinião bastante crítica sobre a política científica no País. Mas, na eleição, manifestou apoio publicamente à Dilma. Por quê?


Porque a outra opção era trágica. Basta olhar para o Estado de São Paulo: para a educação, a saúde e as universidades públicas. Não preciso falar mais nada. Eu adoro a USP [Universidade de São Paulo], onde me formei. Mas a liderança que temos hoje na USP é terrível. O reitor da USP (João Grandino Rodas) é uma pessoa de pouca visão. Não chega nem perto da tradição das pessoas que passaram por aquele lugar. São Paulo acabou de perder um investimento de 150 milhões de francos suíços (cerca de R$ 270 milhões) porque o reitor da USP não tinha tempo para receber a delegação de mais alto nível já enviada pelo governo suíço ao Brasil. Mandaram o pró-reitor de pesquisa da universidade (Marco Antônio Zago) fazer uma apresentação para eles. Ninguém agradeceu a visita. Manifestei oficialmente ao professor Zago minha indignação como ex-aluno da USP.


Um integrante da delegação suíça doou um supercomputador de US$ 20 milhões de dólares (cerca de R$ 34 milhões) para nosso instituto em Natal. Chegou na semana passada e será um dos mais velozes do Brasil. Não pagamos um centavo. Não há mais espaço para provincianismo na ciência mundial. Nas reuniões que presenciei com comitês e comissões de outros países, a tônica da Fapesp sempre foi assim:


“Fora de São Paulo não existe ciência que valha a pena investir.”


Esse tipo de coisa é muito mal visto pelos estrangeiros. Não há mais lugar para regionalismo, preconceito. É ótimo para São Paulo ser responsável por 70% da produção científica do País, mas é muito ruim para o País, que precisa democratizar o acesso à ciência. Não adianta dizer em reuniões com emissários internacionais que São Paulo tem uma “relação amistosa” com o Brasil, este outro País fora das fronteiras do Estado. Este bairrismo não ajuda em nada.


A Fapesp é uma jóia, um ícone nacional, reconhecida no mundo inteiro. Mas isso não quer dizer que as últimas administrações foram boas. Temos de ser críticos. Esta última administração, em especial, foi muito ruim. A Fapesp está perdendo importância. Veja só: a Science (no artigo publicado há algumas semanas sobre a ciência no Brasil) não dedicou uma linha à Fapesp. Que surpresas você vê saindo da ciência de São Paulo? Acho que a matéria da Science foi uma boa chamada para acordar, para sair dos louros, descer do salto alto e ver o que podemos fazer com os R$ 500 milhões anuais da Fapesp.


Ah, se eu tivesse um orçamento assim! Temos muito menos e posso dizer para o diretor-científico da Fapesp (Carlos Henrique de Brito Cruz) que nós saímos na Science. E ele tem condição de investir nos melhores centros de pesquisa do País.


Como você avalia o governo Lula?


Apoiei e apoio incondicionalmente o presidente Lula porque vivemos hoje o melhor momento da história do País. A proposta global de inclusão do governo Lula – e espero que será a mesma com a Dilma – é aquela que eu acredito. Contudo, os detalhes devem ser corrigidos. Admiro profundamente o ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende. Tivemos grandes avanços como a criação dos INCTs e dos fundos setoriais. Mas o ministro não enfrentou a estrutura. Talvez não pudesse, por não ter condições práticas ou por fazer parte dela, por ter crescido nela. Em oito anos, nunca fui chamado para dar uma opinião no MCT ou para apresentar os resultados do projeto de Natal. Sei que outros cientistas, melhores do que eu, também não foram chamados. É curioso. Mas fui chamado pelo Ministério da Educação. O ministro (Fernando Haddad) é o melhor que já tivemos na história da República. Ele criou a infraestrutura que será lembrada daqui a 50 anos como a reviravolta da educação brasileira. Com o Haddad eu consigo conversar e nossa parceria está dando resultados.


O que você achou da escolha de Aloizio Mercadante para o Ministério da Ciencia & Tecnologia?


Estou curioso para saber qual é o currículo dele para gestão científica. Fiquei surpreso com a indicação, mas não o conheço. Não tenho a mínima ideia do seu grau de competência. Mas não fica bem para a ciência brasileira – um ministério tão importante virar prêmio de consolação para quem perdeu a eleição. Não é uma boa mensagem. Mas talvez seja bom que o futuro ministro não seja um cientista de bancada, alguém ligado à comunidade científica. Assim, se ele tiver determinação política, poderá quebrar os vícios. O primeiro ministro da Ciência e Tecnologia (Renato Archer, que permaneceu no cargo de 1985 a 1987) não era cientista e foi talvez um dos melhores gestores que já tivemos. Ele tinha consciência de que seu ministério era estratégico. O MCT estabelece parcerias e tem impacto na ação de outros ministérios: Educação, Saúde, Indústria e Comércio, Relações Exteriores, Agricultura, Meio Ambiente. Hoje, boa parte do orçamento do ministério não é nem executado. As agências de financiamento não têm uma rotina de chamadas. Não podemos continuar como está.

MILITARES GOLPISTAS DE 64 DESMORALIZADOS POR UM ADVÉRBIO

Por Mylton Severiano


Um general da reserva, Paulo Chagas, citado por Carta Capital (nas bancas), diz que Nelson Jobim, ministro da Defesa, convidar o ex-guerrilheiro do Araguaia José Genoino para seu assessor direto, entre outros motivos, significa que se pretende “desmoralizar definitivamente os militares”.


Tal qual o peixe, morreu pela boca. Esse “definitivamente” traiu o general golpista. Significa que ele mesmo já se considerava desmoralizado, e agora, com o convite de Jobim a Genoino, está desmoralizado “definitivamente”, ou seja, de uma vez por todas.


Pra mim, estão desmoralizados desde o Dia da Mentira de 64, ao usar armas contra seu próprio povo, dando o golpe encomendado por Washington; desmoralizaram-se mais um pouco permitindo tortura, estupro e desaparecimento de opositores; mais um tanto promovendo a mais escandalosa concentração de renda e riqueza; e “definitivamente” ao entregar de volta o povo mais pobre, o país mais endividado, mais violento do que encontraram.


Em tempo: o general Chagas diz que Genoino foi derrotado nas armas. Mas com canhões contra espingardas pica-pau até eu, general. O que os golpistas de 64 não conseguiram foi vencer “na moral”. Invertendo o dístico de um guerrilheiro vitorioso do meu tempo, digo que a História os condenará.


Aliás, já os condena. Por isso, enquanto uns generais chiam, outros dizem que não têm vergonha do que perpetraram. (Se eu escrevesse 40 anos atrás um décimo do que escrevi acima, e me pegassem, em menos de 24 horas estaria pendurado no pau-de-arara, esfolado, empalado, surrado a pau, a barra de ferro, eletrocutado, morto, mortinho da silva.)

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

CASO BATTISTI EM QUE SERVE A CAUSA DA HUMANIDADE MANDAR ESSE HOMEM PARA CUMPRIR PRISÃO PERPETUA NA ITALIA?

Por Mylton Severiano

Recebemos da Carta O Berro, sob o título Reflexões de Luís Roberto Barroso sobre o caso Cesare Battisti, do escritório Luis Roberto Barroso & Associados, que defende o refugiado Cesare Battisti no STF. Ele expõe questões que não chegaram ao conhecimento do público em geral e conclui: "A partir daqui, cada um formará seu próprio juízo, de acordo com seus valores, suas crenças, seus desejos." Publicamos na íntegra aqui para melhor esclarecer quem nos lê.


Carta aos Migalheiros


Reflexões sobre o caso Cesare Battisti


Nas últimas semanas, tenho acompanhado, com interesse profissional e acadêmico, os diversos artigos e comentários que têm sido veiculados em Migalhas sobre o processo envolvendo o pedido de extradição e a concessão de refúgio a Cesare Battisti. Fiz grande proveito pessoal de todas as manifestações, assim as favoráveis como as desfavoráveis. Naturalmente, como advogado da causa, não poderia me apresentar como alguém que tenha uma visão neutra e imparcial. Mas, de longa data, sou militante da crença de que quem pensa de maneira diferente da minha não é meu inimigo nem meu adversário, mas meu parceiro na construção de um mundo plural e tolerante. E acho, de maneira igualmente sincera, que em um tema levado ao debate público, todos têm direito à própria opinião. Mas, talvez, não aos próprios fatos. As anotações que se seguem têm por finalidade narrar objetivamente os fatos relevantes e expor as principais teses jurídicas que estão em discussão. Ao final, cada leitor, de maneira independente e esclarecida, formará a sua convicção.


1. Militância comunista e no PAC. Cesare Battisti ingressou na organização Proletários Armados pelo Comunismo (PAC) em 1976, com pouco mais de 20 anos. Nascido em uma família comunista histórica, militou desde os dez anos na causa, tendo participado dos movimentos Lotta Continua e Autonomia Operária. O PAC praticou inúmeras ações subversivas no período entre 1976 e 1979, com o propósito de enfraquecer e, eventualmente, derrubar o regime político italiano. Tais ações incluíram furtos de carros, furtos em estabelecimentos de crédito, furtos de armas, propaganda subversiva e quatro mortes. Os mortos foram um agente penitenciário, um agente policial e dois “civis”: um joalheiro e um açougueiro. Os dois civis eram ligados à extrema direita, andavam armados e haviam matado militantes de esquerda, em reação a “operações subversivas de autofinanciamento”.


2. Fim do PAC, prisão e julgamento de seus membros. Em 1979, a organização Proletários Armados pelo Comunismo foi desbaratada e a maioria de seus membros foi presa. Levados a julgamento por todas as operações do grupo naquele período, houve diversas condenações. Quatro dos integrantes do PAC – mas não Cesare Battisti – foram condenados por um dos homicídios: o do joalheiro Torregiani. Cesare Battisti não era considerado sequer suspeito de qualquer dos homicídios e não foi acusado de nenhum deles. Foi condenado, no entanto, a uma pena de 12 anos por delitos tipicamente políticos: participação em organização subversiva e participação em ações subversivas. Esteve preso de 1979 a 1981, em uma prisão para presos políticos que não haviam cometido ações violentas. De lá evadiu-se em 1981, em operação conduzida por um dos líderes do grupo – Pietro Mutti –, que não havia sido preso ainda. Battisti refugiou-se inicialmente no México e depois na França, onde recebeu abrigo político.


3. A delação premiada. Em 1982, Pietro Mutti, que era acusado pelos homicídios e por participação na maioria das ações do grupo, foi preso. Abstraindo das muitas denúncias da Anistia Internacional sobre torturas no período, o fato é que Mutti torna-se “arrependido” e “delator premiado”. Nessa condição, acusa Cesare Battisti de ter sido o autor dos quatro homicídios atribuídos ao grupo. Como dois dos homicídios ocorreram no mesmo dia, em localidades diversas e distantes – o do joalheiro Torregiani e o do açougueiro Sabadin –, Mutti afirmou que Battisti seria responsável pelo primeiro como autor intelectual – teria participado de uma reunião em que se discutiu a ação – e do segundo como cúmplice, dando cobertura ao autor do disparo. Nos outros dois homicídios – dos agentes Santoro e Campagna –, Mutti acusou Battisti de ter desferido os tiros.


4. “Provas” totalmente frágeis. As únicas provas contra Battisti foram a delação premiada de Mutti e a “confirmação” feita por outros acusados dos homicídios e das ações do PAC. Mutti mudou diversas vezes de versão e de pessoas às quais acusava, protegendo e incriminando deliberadamente determinados militantes, conforme reconhecimento textual da sentença. As outras “provas” referidas na sentença italiana fariam corar um aluno de primeiro ano de direito penal. Coisas do tipo: o autor do disparo contra Santoro, segundo testemunhas, era louro e de barba. Battisti é moreno e sem barba. No entanto, segundo Mutti, ele estaria disfarçado. Outra “prova”: a pessoa que ligou para a agência de notícias reivindicando a autoria do fato tinha sotaque do sul da Itália. Battisti é do sul da Itália. Logo, Battisti é o autor do homicídio!? Mais ou menos como incriminar alguém no Brasil por ter sotaque nordestino.


5. Réu revel e indefeso. Procurações falsas. A trama era extremamente simples: a culpa de todos os homicídios foi transferida para Cesare Battisti, o militante que estava fora do alcance da Justiça italiana, abrigado na França. Sem surpresa, o processo de Battisti foi “reaberto”, tendo sido ele julgado à revelia e condenado à prisão perpétua. Sem ter indicado advogado e sem ter sido defendido eficazmente. Detalhe importante: as procurações pelas quais os advogados de defesa teriam sido constituídos foram consideradas falsas em perícia realizada na França. De fato, ao fugir, Battisti deixou folhas em branco assinadas. Tais folhas foram preenchidas anos depois – este o fato comprovado pela perícia –, com nomes de advogados que defendiam diversos dos acusados, indicados pela liderança do PAC (isto é, pelos delatores premiados). Não apenas o conflito de interesses era evidente, como o advogado que “defendeu” Battisti afirmou que jamais falou com ele, razão pela qual sequer poderia contestar as acusações sobre novos fatos imputados pelos delatores premiados.


6. Abrigo político na França. Battisti permaneceu na França, como abrigado político, por 14 anos. Trabalhou como zelador até tornar-se um escritor reconhecido, publicado pelas principais editoras francesas. Dentre outras coisas, denuncia as arbitrariedades da repressão italiana. Em 1991, a Itália requereu sua extradição, que foi negada pela Justiça francesa. Cesare Battisti casou-se e teve duas filhas, uma nascida no México, hoje com 25 anos, e outra na França, hoje com 14 anos. Jamais esteve envolvido ou foi acusado de qualquer ação antissocial desde 1979. Em 2003, mais de 12 anos depois do primeiro pedido de extradição, Sylvio Berlusconi chega ao poder na Itália e passa a perseguir os antigos militantes que haviam participado dos anos de chumbo. Diante da recusa da Inglaterra e do Japão de extraditar antigos acusados, Cesare Battisti se transforma no último troféu político daquele período. A Itália requer uma vez mais à França, já agora sob o governo de Jacques Chirac, a extradição de Cesare Battisti. A França defere. Antes da execução da decisão, Cesare Battisti foge para o Brasil.


7. Prisão e refúgio no Brasil. Em 2007, já próximo das eleições francesas, Battisti é preso no Brasil com a ajuda da polícia francesa, à época comandada por Sarkozy, Ministro do Interior e candidato à presidência. Sua prisão é usada como tema de campanha eleitoral, fato amplamente noticiado pela mídia européia. A Itália requer sua extradição. Como a Constituição brasileira veda a extradição por crime político, o pedido italiano destaca do conjunto das condenações apenas os quatro homicídios e sustenta a tese de que foram crimes comuns. Cesare Battisti requer a concessão de refúgio político ao Conare – Comitê Nacional de Refugiados. O pedido é indeferido por três votos a dois. Em janeiro de 2009, o ministro da Justiça, Tarso Genro, apreciando recurso contra aquela decisão, concede-lhe refúgio político.


8. Fundamentos do refúgio. A decisão do ministro da Justiça se baseou em um conjunto de fatos que são notórios e foram adequadamente narrados na sua fundamentação. A Itália de fato viveu um período de convulsão política conhecido como “anos de chumbo”. Esse período foi marcado por violência, radicalização e pela aprovação de legislação de exceção. Inúmeros relatórios dos organismos internacionais de direitos humanos registraram fatos graves no período, associados à conduta do Estado italiano. Cesare Battisti foi condenado em julgamento coletivo por tribunal do júri, à revelia. Sua extradição só foi concedida pela França, depois de 14 anos, quando o ambiente político havia se modificado na Itália e na França. Era plausível o temor de perseguição política. Alguém pode até discordar da avaliação política do ministro. Mas a decisão foi bem fundamentada, tendo sido manifestada em linguagem polida e diplomática.


9. Por qual razão aceitei a causa. Procurado pela escritora francesa Fred Vargas, em nome de um grupo de intelectuais franceses que apóia Cesare Battisti, dispus-me a estudar o caso. E, após fazê-lo, aceitei a causa, por considerá-la moralmente justa e juridicamente correta. E isso por duas linhas de razões. A primeira: sou convencido, pelo conjunto consistente de elementos objetivos descritos acima, que Battisti foi transformado em bode expiatório. Seus ex-companheiros e, depois, delatores premiados, estavam certos de que ele se encontrava protegido na França e transferiram-lhe crimes e culpas que jamais teve e pelas quais não havia jamais sido acusado. Ademais, é fora de dúvida que não teve devido processo legal. E de que é um perseguido político. Ainda que não estivesse convencido desses argumentos – como de fato estou –, haveria um segundo, muito consistente.


10. A derrota do socialismo e a vingança da história. Mais de trinta anos se passaram desde os fatos relevantes para o presente processo, ocorridos no auge da guerra fria, do embate entre socialismo e capitalismo. O sonho socialista e a tomada revolucionária do poder faziam parte do imaginário de um mundo melhor de toda uma geração. A minha geração. Eu vi e vivi, ninguém me contou. Condenar esses meninos e meninas – era isso o que eram quando entraram para o movimento – décadas depois, fora de seu tempo e do contexto político daquela época, após a queda do muro de Berlim e da derrota da esquerda, constitui uma expedição punitiva tardia, uma revanche fora de época, uma vingança da história.


Gosto de lembrar de uma frase que está inscrita na capela do Castelo de Chenonceau, na França, na entrada, à direita:


“A ira do homem não realiza a vontade de Deus.”


O DIREITO


11. Natureza do ato de refúgio. O ministro da Justiça concedeu refúgio a Cesare Battisti por fundado temor de perseguição política, com base no art. 1º, I da Lei nº 9.474/97. Trata-se, inequivocamente, de um ato político, com ampla margem de valoração discricionária. Havia orientação jurisprudencial expressa do Supremo Tribunal Federal a respeito.


Com efeito, a crença de que o conceito jurídico indeterminado “perseguição política” possa ser tratado como algo rigorosamente objetivo, sem margem a valoração discricionária, é singularíssima. Além do precedente já referido – caso Medina –, a doutrina é pacífica. O professor Celso Antônio Bandeira de Mello, referência nacional e internacional do direito administrativo brasileiro, e citado em favor da tese de que se trataria de ato vinculado, veio a público para dizer, textualmente, que discordava veementemente desse ponto de vista. Além disso, afirmou que a Lei nº 9.474/97 impõe que seja extinta a extradição após a concessão de refúgio. Nesse ponto, aliás, a lei brasileira apenas reproduz as Convenções internacionais sobre refúgio e asilo. Não desconheço que muitas pessoas divergem da decisão política do ministro. Mas a verdade é que ele era a autoridade competente para tomá-la.


12. Subversão da jurisprudência. Ora bem: assentado tratar-se de ato político, a jurisprudência histórica do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que o Judiciário não deve sobrepor a sua própria valoração política sobre a da autoridade competente. O mérito do ato político não dever ser revisto. Além disso, o Supremo Tribunal Federal, também de longa data, já havia assentado que atos referentes às relações internacionais do país – como o refúgio – são de competência privativa do Poder Executivo. Vale dizer: para extraditar Cesare Battisti, o STF precisa modificar, de maneira profunda, três linhas jurisprudenciais antigas, consolidadas e corretas, passando a afirmar: a) refúgio não extingue automaticamente a extradição; b) não constitui ato de natureza política; e c) atos relativos às relações internacionais do país não constituem competência privativa do Executivo. Até a jurisprudência antiga e reiterada de que o STF apenas autoriza a extradição, mas que a decisão final é do Presidente da República, está sob ataque.


13. Impossibilidade da extradição: crime político. Mesmo que o refúgio fosse anulado, a extradição não poderia ser concedida. Cesare Battisti participou de um conjunto de ações na luta política italiana no final da década de 70. Em um primeiro julgamento foi condenado por participar de organização subversiva e de ações subversivas. O segundo julgamento, considerado “continuação” do primeiro, incluiu quatro homicídios. A sentença condenou-o a uma pena única – prisão perpétua – pelo conjunto das ações. Referiu-se a elas como “um único desenho criminoso” e fez mais de trinta referências a “subversão” da ordem política, econômica ou social. Como é possível destacar quatro fatos e tratá-los como crimes comuns quando a sentença é una, a pena é única e a decisão se refere ao conjunto da obra?


O próprio STF já negou extradição de italianos por ações análogas praticadas no mesmo período – incluindo homicídio –, sendo que a decisão de uma delas é do mesmo tribunal que condenou Battisti.


14. Impossibilidade de extradição: anistia. A extradição, como se sabe, exige dupla imputação: é preciso que o fato seja crime no país requerente e no país requerido. Os fatos imputados a Cesare Battisti – ainda que se quisesse, arbitrariamente, ignorar sua natureza política –, são conexos com sua atuação política. No Brasil, a Lei da Anistia (Lei nº 6.683/79) e a Emenda Constitucional nº 26, de 1985, anistiaram os “crimes de qualquer natureza” relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política, praticados entre 2 de setembro e 15 de agosto de 1979. Pois bem: a sentença italiana afirma, textualmente, que as mortes foram praticadas como justiçamento de “inimigos do proletariado” e de “agentes contra-revolucionários”. Battisti foi até condenado pela reivindicação política dos atentados, tipificada como propaganda subversiva. Como seria possível afirmar que não são crimes que tiveram motivação política?


A Itália, passadas mais de três décadas, não conseguiu aprovar uma lei de anistia. Mas nós, sim. Felizmente. Se houve anistia aqui pelos mesmos fatos, não cabe extradição.


15. Impossibilidade da extradição: prescrição. A sentença proferida no segundo julgamento contra Cesare Battisti é de 13.12.1988 – por ironia, data de aniversário do Ato Institucional nº 5. A condenação foi à pena de prisão perpétua. O Ministério Público não recorreu, até porque não tinha interesse. Para ele, portanto, deu-se aí o trânsito em julgado.


Em 13.12.2008, consumou-se a prescrição. O entendimento pacífico do STF é que a prisão preventiva – Battisti foi preso em 2007, para fins de extradição – não suspende o curso da prescrição. Para deixar de reconhecer a prescrição, o STF teria que alterar também essa linha jurisprudencial consolidada. Note-se que em relação a um dos homicídios – o de Torregiani – a condenação de Battisti envolve “reformatio in pejus” [latim: mudança para pior], já que, no primeiro julgamento coletivo, outras pessoas – e não ele – foram condenadas. Note-se, também, que em relação a esta condenação, a sentença de 1988 foi inicialmente anulada com remessa para confirmação. E foi efetivamente “confirmada”, nos termos da própria decisão italiana. Não se reabriu prazo recursal para o Ministério Público e, portanto, o termo da prescrição não foi alterado.


16. Impossibilidade da extradição: violação do devido processo legal. A extradição é inviável, pois a sentença condenatória violou elementos essenciais do devido processo legal (Constituição, art. 5º, LIV e Lei nº 6.815/80, art. 77, VIII): cuidou-se de revisão criminal in pejus [para pior], na qual o peticionário restou revel perante Tribunal do Júri.


Além disso, foi condenado a prisão perpétua – sem que a Itália tenha se comprometido a comutar a pena –, representado por advogado que era também patrono de outros réus implicados nos mesmos fatos, em conflito de interesses, sendo certo que o fundamento determinante da nova condenação foi depoimento obtido em programa de delação premiada.


CONCLUSÃO


17. Como qualquer pessoa do ramo poderá constatar, não são teses retóricas, sentimentais ou políticas. Pelo contrário, trata-se de argumentação jurídica, fundada no conhecimento convencional e na jurisprudência dominante. A anulação do ato de refúgio, sem procedimento próprio, do qual tivessem participado a autoridade competente e o próprio refugiado, é que não corresponde ao entendimento tradicional, tanto no direito internacional como no interno. Ainda assim, reitera-se aqui o respeito devido e merecido por quem professa crença diversa.


18. Como assinalado, a defesa não seguiu o caminho do argumento humanitário, que poderia ser assim enunciado: Cesare Battisti vive há mais de trinta anos uma vida pacata e produtiva; constituiu família e contribui decisivamente para a criação de duas filhas ainda jovens (14 e 25 anos); é uma pessoa querida e respeitada na comunidade intelectual francesa, da qual participou ativamente nos 14 anos em que esteve abrigado na França. A pergunta é natural e óbvia: em que serve à causa da humanidade mandar esse homem para cumprir prisão perpétua na Itália?


Outra pergunta: que sentimentos ainda movem aquele admirável país para fazer com que, décadas depois, não tenha conseguido aprovar uma lei de anistia dos velhos adversários? Mais do que isso, como bem destacou o professor Celso Antônio Bandeira de Mello: observando a inacreditável mobilização política italiana, trinta anos depois dos fatos, é possível imaginar que eles estejam mesmo à caça de um criminoso comum? E alguém acha, verdadeiramente, que há ambiente político na Itália para que esse homem cumpra pena sem grave risco de violações à sua dignidade?


Uma última pergunta: por que o Brasil deveria fazer uma ponta nesse filme, desempenhando um atípico papel de carrasco?


19. A defesa não explorou, tampouco, uma linha de argumentação política. Battisti foi militante do sonho socialista, que empolgou corações e mentes em outra fase da história da humanidade. É vítima de uma expedição punitiva fora de época. Cesare Battisti, tragicamente, não consegue se desvencilhar de sua sina de troféu simbólico de disputas políticas por onde passa. Em meio a palavras de ordem e juízos sumários, poucos são os que leram a decisão concessiva de refúgio. E menos ainda os que estão verdadeiramente interessados em sua vida, seus direitos e no terror que o espera em um cárcere político italiano.


20. Não tem sido fácil enfrentar a pretensão da Itália. Por muitas razões. Trata-se de um país fascinante, poderoso e querido pelos brasileiros. Um encantamento que não se abala pelas notícias estarrecedoras que vêm de lá, em domínios que vão da perseguição a imigrantes a usos atípicos de palácios governamentais. Nem por certas práticas políticas que espantariam os mais atentos observadores da cena política latino-americana. Como, por exemplo, a que levou à “convocação” do representante no Brasil do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Sob ameaças e intimidações, foi obrigado a cancelar as audiências que pedira aos ministros do STF e teve de fazer as malas e partir. Basta consultar alguém que tenha ouvido seu relato, sofrido e indignado, acerca da pressão feita pela Itália junto ao órgão (Acnur), em Genebra.


21. Tampouco é fácil enfrentar certo senso comum, que se colhe na opinião pública em geral – e na mídia, em particular – de que, pelas dúvidas, não devemos nos incomodar e nos indispor com a Itália por um indivíduo que nada tem a nos oferecer. Uma visão pragmática e utilitária da vida, que não leva em conta miudezas como dignidade humana e direitos fundamentais das pessoas. É nesse ambiente de indiferença que o público deixa de saber de alguns fatos que talvez fizessem diferença, como por exemplo:


a) que o procurador-geral da República até alguns meses atrás – o Dr. Antônio Fernando de Souza –, cujas manifestações sempre atraíram grande interesse da imprensa, pronunciou-se de maneira taxativa pela validade do refúgio e pela extinção da extradição;


b) que na data do julgamento, seu sucessor, Dr. Roberto Gurgel, fez um veemente pronunciamento em favor do respeito ao refúgio, fim da extradição e libertação de Cesare Battisti;


c) que alguns dos mais proeminentes juristas brasileiros, pro bono [pelo bem] e desinteressadamente, se pronunciaram em favor do refúgio e da extinção da extradição, dentre os quais os professores José Afonso da Silva, Paulo Bonavides, Dalmo Dallari e Celso Antônio Bandeira de Mello;


d) que a Comissão de Assuntos Constitucionais da Ordem dos Advogados do Brasil e o Instituto dos Advogados do Brasil se manifestaram favoravelmente à validade do ato de refúgio e à extinção do processo de extradição;


e) que o ministro Joaquim Barbosa não apenas proferiu voto a favor do refúgio e contra a extradição (acompanhado pelos eminentes ministros Eros Grau e Cármen Lúcia), como se queixou de maneira veemente contra a “arrogância” do governo italiano nesse caso e contra a “insistência inapropriada” da Itália em suas gestões junto ao Supremo Tribunal Federal.


22. A perspectiva é que na retomada do julgamento, com o voto-vista do ministro Marco Aurélio, ocorra um empate. Sinal inequívoco de que, no mínimo, há dúvida razoável. Note-se bem: com todo o peso político da Itália e com todo o peso de uma opinião pública predominantemente contrária, talvez haja empate. Só quem estava do lado da defesa pode saber o que isso significa. Pois bem: depois de se excepcionarem tantos precedentes – refúgio não é ato político, relações internacionais não são competência privativa do Executivo, prisão preventiva interrompe a prescrição –, seria o caso de se excepcionar só mais um e decidir: in dúbio [na dúvida], pró condenação? Condenar um homem por voto de Minerva? Só para registro, a origem da expressão refere-se à decisão da deusa Atenas (Minerva), que diante do empate, absolveu Orestes, que vingara a morte de seu pai, Agamenon.


23. Estes os fatos e as teses jurídicas. A história real, documentada, que não se consegue contar. De um lado, o poder, as razões de Estado, a perseguição sem fim. De outro, um indivíduo, seus direitos fundamentais, a página virada da história. A partir daqui, cada um formará seu próprio juízo, de acordo com seus valores, suas crenças, seus desejos. Não tenho, nem poderia ter, a pretensão de controlar o pensamento e o sentimento alheios.


Luís Roberto Barroso

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

AGENTES DO ESTADO? CARRASCOS? AS DUAS COISAS?

Por Mylton Severiano


Para mim, enquanto as Forças Armadas não me pedirem perdão pela desgraça de 64, não dá para haver conciliação. São “eles” com medo de nós e nós com medo “deles”. Se me pedem desculpa estendo a mão e vamos zerar tudo e começar algo novo, porque enquanto “eles” ficam na defesa dos torturadores e da tortura, fico com um pé atrás: “Eles pretendem seguir no ‘direito’ de torturar o povo outra vez?”


Nosso blog transcreve oportuno artigo do ex-ministro da Justiça e agora governador gaúcho:


O STF E A TORTURA


Tarso Genro

A recente sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre a repressão à guerrilha do Araguaia tratou diretamente de uma controvérsia que enfrentei como ministro da Justiça.


Tratava-se, na época, de defender a aplicabilidade, ou não, da Lei de Anistia para isentar de processo legal os violadores de direitos humanos que, inclusive fora da legalidade do próprio regime militar, cometeram barbáries contra "subversivos" sob custódia do Estado. É bom lembrar que, mesmo durante aquele período excepcional, não existia ordem de serviço ou qualquer outra norma legal que permitisse tortura ou execução de pessoas que estivessem sob custódia. Na Argentina de Videla e no Afeganistão de Bush isso ocorreu, em um momento de regressão às trevas de Torquemada.


No debate que ocorreu aqui no Brasil apareceu a indagação "quem estava defendendo o Brasil"? Sustentei que defender o Brasil era defender o prestígio do nosso Estado de Direito olhando para o futuro.


Era defender, portanto, a não aplicação desta Lei de Anistia aos torturadores. Disse isso na época e reafirmo agora.


Não só porque assim ordenam todos os diplomas de direito internacional -como declarou a Corte Interamericana- mas também porque essa é a posição que traduz a boa interpretação da nossa Constituição Federal.


A estratégia adotada pelos juristas -ou "juristas"- adversários desse pensamento -dentro e fora do Supremo- foi a de alegar que a nossa pretensão era "revisar a Lei de Anistia" e também "atacar as Forças Armadas". Mentiram.


Nunca ninguém defendeu a "revisão" da Lei de Anistia, mas a sua interpretação adequada à Constituição do país. Nunca ninguém quis "revisar" o passado ou agredir as Forças Armadas como instituição, orgulho da nossa soberania.


A bem da verdade, o que tem sido revisado até agora, pela nova direita brasileira, é o papel dos mandatários da ditadura. Os revisionistas ressaltam a nobreza da atuação dos que policiavam e apontam que aqueles que resistiram ao regime fizeram-no de forma espúria. Uma total inversão da história, que reescreve a ditadura de maneira insolente.


De todos os argumentos -todos falsos-, o mais intrigante e covarde foi o último: que o pedido de processamento dos torturadores era um "ataque às Forças Armadas".


Esse argumento tinha dois alvos: intimidar os julgadores (acho que o fizeram com parcial sucesso) e colocar contra os militares os que pretendiam julgar os criminosos.


Bem examinado, os adversários do julgamento dos torturadores é que, com seus argumentos, implicam diretamente as Forças Armadas com a tortura: "misturam" torturadores com a instituição, como se os delinquentes, nos porões do regime, estivessem a mando dela.


Eximem os torturadores, assim, de suas responsabilidades individuais como agentes públicos e, para garantir sua impunidade, os confundem com a corporação. O que sempre defendemos foi a responsabilização jurídica e política dos indivíduos que atuaram, sistematicamente, como carrascos, e não como agentes do Estado.


Assim como os "subversivos" foram responsabilizados jurídica e politicamente por seus atos e expostos, publicamente, antes e depois da redemocratização do país, o justo é que todos respondam perante a lei, mesmo que depois não sejam presos, pela idade avançada.


Os "subversivos" responderam perante os tribunais de exceção.


Que os torturadores respondam perante os tribunais do Estado de Direito, para que as novas gerações saibam de tudo. Para que nunca mais aconteça.


________________________________________

TARSO GENRO é governador eleito do Rio Grande do Sul. Foi ministro da Justiça (2007-2010), ministro da Educação (2004-2005), ministro da Secretaria Especial do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República (2003-2004) e prefeito de Porto Alegre pelo PT (1993-1996 e 2001-2002).

BENVINDO AO BRASIL, BATTISTI

O presidente Lula despede-se com chave de ouro. O blog O Berro publica o artigo abaixo no primeiro dia de 2011, e o ano já começa bem. Republicamos aqui:
CESARE BATTISTI


Laerte Braga


A decisão do presidente Lula de conceder refúgio político ao escritor italiano Cesare Battisti é correta sob todos os aspectos. O governo italiano não conseguiu provar junto à Justiça brasileira que Battisti é culpado dos crimes dos quais é acusado e tampouco oferecer garantias de um julgamento justo, no caso da extradição, até em observância ao que determina o tratado sobre o assunto entre Brasil e Itália.


Foi desastrada a ação do governo de Berlusconi (como desastrado é seu governo) na condução do processo. Vergonhosa a atitude do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) quando recebeu o embaixador da Itália pela porta dos fundos de seu gabinete e suas atitudes após essa visita.


Tratou o Brasil, os brasileiros, o governo, como se fossem lacaios de um governante irresponsável – Berlusconi.


A expressão “terrorista” usada pela mídia privada brasileira para rotular Battisti perdeu o sentido depois do WIKILEAKS e do terrorismo (sem aspas) praticado por norte-americanos e seus aliados (colônias) em todo o mundo.

Não cabe julgar politicamente a participação de Battisti no processo de resistência em determinada época a governos italianos. François Mitterand, socialista e presidente da França por 14 anos, não hesitou um só instante em conceder asilo a Battisti.


O que está no centro do palco é outro tipo de jogo. Um jogo sórdido do primeiro-ministro Berlusconi, contestado por manifestações em toda a Itália e que queria exibir a cabeça de Battisti como troféu para tentar um novo mandato.


E, ademais, é da tradição brasileira abrigar, refugiar, asilar perseguidos políticos. (...)


A decisão final, segundo a Constituição, é do presidente da República. Todas as medidas protelatórias foram tentadas por Gilmar Mendes. À época presidente do STF, é notoriamente ligado a grupos de extrema-direita e empresários envolvidos em corrupção (Daniel Dantas).


Sequer se preocupa em disfarçar, mesmo porque lhe falta o tal “notável saber jurídico”. Tanto quanto a “reputação ilibada” para integrar a mais alta corte de justiça do País. É invenção de FHC para garantir a impunidade da turma.


A decisão de Lula foi coerente com sua história, respaldada no Direito e reforça a tradição brasileira de braços abertos aos perseguidos políticos em outros países (exceção vivida apenas no período da ditadura militar, ela própria perseguidora).(...)

O que pouca gente sabe – é lógico, a mídia privada está no bolso e esconde – é que Berlusconi tem grandes negócios no Brasil e seus tentáculos chegam a setores do mundo institucional, com a prodigalidade típica dos corruptos.


Não há cabimento no argumento que temos nossos problemas e não devemos nos ocupar dos problemas dos outros.

Battisti está preso no Brasil, buscou o nosso País para refugiar-se de ações ilegais do governo de seu país, logo é um problema nosso. (...)


Battisti foi partícipe de um processo de lutas que permeava toda a Europa na década de 60 e se estendia a todo o mundo de modo geral. Um processo decisivo na construção de estradas passíveis de se começar a abrir picadas em meio a um estado autoritário no seu todo, mesmo em supostas democracias como a italiana.


Lula fecha com chave de ouro seu governo – ao qual cabem críticas, evidente – ao conceder refúgio político a Cesare Battisti sem se intimidar com a cara feia de um governo que preside uma colônia norte-americana na Europa, o italiano e a Itália, e é antes de mais nada uma reedição trágica dos momentos pornográficos dos césares, ou histriônicos do Duce.


E não poderia ser diferente, Berlusconi é banqueiro.


Mostra um Brasil diferente daquele de FHC. Um Brasil que a despeito dos problemas, das críticas que possam ser feitas, caminhando ereto, de pé, que se espera, aliás, continue a ser assim com Dilma Roussef.


Carta o berro


Primeiro do novo ano