quinta-feira, 25 de março de 2010

ENTREVISTONA


AUDÁLIO DANTAS
Damos continuidade à série de entrevistas com grandes figuras das comunicações, iniciada com Fernando Pacheco Jordão. 
O alagoano Audálio Ferreira Dantas nasceu em Tanque d’Arca, em 1932, vizinho de Graciliano Ramos, natural de Quebrangulo, de quem é parente – a mãe tinha o mesmo sobrenome de antepassados do escritor, Ferreira Ferro. Veio para São Paulo aos cinco anos, de navio – “um pau-de-arara aquático”. Já tinha parentes aqui.
Nosso encontro, Amancio e eu com Audálio, se dá a 16 de março de 2010 na sala da diretoria do Sindicato dos Jornalistas no Estado de São Paulo, que ele dirigiu (1975-1978). O Sindicato, sob sua direção, foi palco de cenas memoráveis, que influíram na história da República. Mesa para oito pessoas, nos fundos do prédio da rua Rego Freitas, a cem passos da igreja da Consolação, outro palco importante, onde jornalistas e metalúrgicos confraternizaram na passagem dos anos 1970 para os 1980, na solidariedade que amalgamou o bloco “abaixo a ditadura”. Audálio relembra fatos históricos; faz revelações sobre a atuação do Sindicato da categoria – quando ele o dirigia, mataram o colega Vladimir Herzog na tortura; e vergasta os vendilhões do templo. 
“A imprensa inventou o jornalismo investigativo, como se jornalismo não fosse investigativo; a tevê ou explora a miséria ou faz jornalismo maquiado”

A vocação para jornalismo nasceu quando?
Eu gostava de ler. Descobri Jorge Amado e me empolguei, principalmente Capitães da Areia e Jubiabá. E comecei a tentar escrever. Surgiu uma oportunidade, no começo dos 1950, uma vaga no laboratório fotográfico da Folha de S. Paulo, veja só. Conheci o Luigi Mamprin, meu grande e maravilhoso amigo. Eu revelava as fotos, o banho deixava as unhas pretas, eu achava bacana. Fui nascendo jornalista por aí. 
Você  queria mesmo era meter a mão na máquina de escrever.
É. Mas fui revelando, fazendo fotos, um dia pensei “vou escrever sobre as fotos que fiz”, e os caras gostaram – “esse pau-de-arara leva jeito”, e havia gente boa na Folha, o Hélio Pompeu [tio de dois jornalistas de nossa geração, Sérgio e Renato Pompeu], secretário; Nabor Caires de Brito, Mário Mazzei Guimarães, Mário Lobo, editor da Folha da Tarde, Cícero Vieira, preparador de texto – não se falava copidesque. Ele me dizia “tá bom, mas não use esta expressão, não”. 
Era assim. Meu primeiro chefe na Folha, o Amadeu Gonçalves, eu escrevi “o prefeito houve por bem decretar”, e ele disse: Se “houve por bem decretar”, basta dizer “decretou”, olha que economia de palavras, além do que “houve por bem” é bem seboso, não?
É. Escapei do modismo que havia, a não-repetição de palavras, ficavam procurando sinônimos. Água era precioso líquido; hospital, nosocômio; você falava cemitério, no parágrafo seguinte era necrópole; incêndio era sinistro; advogado, causídico. 
A gente ia aprendendo com os mais velhos, como nas corporações, o ofício.
Já havia um movimento de novo jornalismo, tinha um repórter bom lá, Carlos de Freitas, também poeta; o Hideo Onaga, primeiro nissei jornalista, formado em Direito. Logo eu estava na turma do primeiro concurso de repórter da Folha, vieram o José Hamilton Ribeiro, o Murilo Felisberto. Esse negócio de “new journalism” americano é uma macaqueação. 
Ficam dizendo que O Cruzeiro, a Realidade...
... Jornal da Tarde... 
... que nós fazíamos “new journalism”, do qual eu nunca tinha ouvido falar. 
Nem eu. Estou com um livro para lançar em que digo que o novo jornalismo, e há outros exemplos mundo afora, mas ficando no Brasil: peguem o Joel Silveira, nos anos 1940. 
João do Rio, Raul Pompeia...
Claro. O Joel fez uma reportagem em 1945, A Milésima Segunda Noite da Avenida Paulista, história do casamento da filha do Conde Matarazzo, que mexeu com a alta sociedade, e ele fez sem comparecer, porque é claro que não iam deixar ele entrar. Entrevistou motoristas, alfaiates, costureiras. Nos anos 1960, o Gay Talése, que a turma diz Talíse, e esse Gay é de Gaetano, é um “calabrês”, ele fez uma matéria, O Dia em que Frank Sinatra Ficou Resfriado. Eu brinco que o Gay copiou o Joel. É o mesmo truque. Mas acontece que os dois são repórteres. A única coisa que o jornalista não pode apanhar da literatura é a ficção. 
E até  pode, o Luiz Fernando Mercadante, na Realidade, fez três meses antes da copa de 1966, em Londres, uma reportagem-ficção – Como Ganhamos a Copa.
Claro, só que você não pode ocultar esse fato, que é uma ficção. 

Você  fala macaqueação, eu interpreto assim: nosso jornalismo ainda tem a cabeça muito colonizada. Para aceitar aquele nosso estilo de escrever, aquela qualidade de texto, tinha de ser americano, não podíamos ser originais.
Sem dúvida é colonialismo cultural. E as pessoas ainda se deliciam com isso, este é que é o problema. Dizia o sábio Mamprin que pior que ser escravo é ter alma de escravo. Essas pessoas têm alma de escravo. 
Os mais velhos apostaram em você, não?
Um dos que investiram em mim foi o Mazzei Guimarães. Em 1957, ele me diz “quer ir para o Nordeste?”, e ele me encarregou de ver o que estava acontecendo na região da hidrelétrica do São Francisco. Pela primeira vez andei de helicóptero... 
A Folha pagou uma viagem dessas em 1957?
Pois é. É o que não estão fazendo hoje. Fiz as duas margens do rio, estava nascendo uma cidade chamada Paulo Afonso, uma favela, fora dos muros da hidrelétrica. Dentro, havia alamedas, casas de funcionários. Minha matéria era o Brasil que estava surgindo e o Brasilzão velho, Paulo Afonso. Na margem esquerda, em Alagoas, havia a cidade de Pedra, do Delmiro Gouveia, cidade-modelo, fundada por volta de 1910, cheia de áreas de lazer, rinque de patinação, o cara era um visionário fantástico. Foi o primeiro aproveitamento da energia de Paulo Afonso. Fundou a cidade, montou uma fábrica de tecidos e de linhas de coser Corrente, famosa no Nordeste. Depois ele foi assassinado, a Machine Cotton comprou a fábrica. 
Essa história eu conheço, os ingleses da Machine pressionaram o Delmiro para vender, aparentemente mandaram matá-lo, compraram a fábrica da viúva e jogaram todos os equipamentos no rio.
É isso. Depois fiz matérias sobre cana-de-açúcar, sobre Tanque d’Arca, Um Lugar Aonde o Correio Chega a Cavalo. Não tinha estrada. 
E você  foi depois para o Cruzeiro.
Em 1959. Era a glória. 
Você  que começou como todos nós daquela geração, é a favor da obrigatoriedade de diploma para exercer a profissão?
Sim. É curioso isso. Porque, apesar da experiência dos grandes jornalistas, acho que essas mesmas pessoas indo para a universidade ficam mais bem aparelhadas. 

Hamilton Almeida Filho não seria jornalista, eu dificilmente seria...
Só que não havia a exigência. Ela só veio a partir dos anos 1960... 
Não elitizou a profissão?
Olha, pode até ter elitizado e você pode dizer que não contribuiu para que surgissem novos talentos. 
E o sistema que vigora por aí, Estados Unidos é assim, o diploma é opcional.
Não é obrigatório. 
No entanto, muitos fazem curso de história, ótimo para quem quer ser jornalista.
Mas as boas universidades lá oferecem curso de jornalismo. 
Mas faz quem quiser, assim como pode fazer filosofia...
... sim, sim. 
Eu fui à formatura, por coincidência da filha do Hamilton Almeida, com a fotógrafa Sandra Adams, em Porto Alegre, a Aninha. A turma tinha uns 200, e haveria outra fornada no fim do ano, numa cidade que não absorve nem um décimo deles.
É, e a Juliana, minha filha, se formou no ano passado, ela tem vocação. Essa discussão, em alguns aspectos você tem razão. Mas a formação também contribui para a organização da categoria. Sem isso, não se cria a consciência da profissão. 
Como você  vê o jornalismo hoje?
Primeiro, há uma tendência geral para o jornalismo de oposição. Não a este governo. Ser de oposição ao estabelecido, e isso se torna um cacoete. E inventaram o tal jornalismo investigativo, como se jornalismo não fosse investigação: você sai, pergunta, investiga, pra saber o que está acontecendo. Mas agora jornalismo investigativo é descobrir se um sujeito, não sei de onde, armou algum negócio, daí você “denuncia”. E há uma verdadeira editorialização. A Veja é mestra nisso, publica uma matéria sobre um golpe qualquer que envolve, como agora, um tesoureiro do PT. Não se pergunta nada. E o assunto passa a ser verdade absoluta. Sem ser apurado. Há uma palavrinha mágica para esse jornalismo que é “investigativo” e ao mesmo tempo não é investigativo: suposto. E se você diz que o acusado tem direitos, eles dizem que você quer “cercear”, eles se enrolam na bandeira da Liberdade de Imprensa, e o que publicam passa a ser verdade absoluta. 
E aquele encontro que houve...
... a Conferência Nacional de Comunicação. 
Eles não foram!
Saíram fora porque “supuseram” que ali se tramava “alguma coisa”. O que é a trama? É a participação do leitor na discussão. Mas muitos caras que organizam isso também são burros: falam em “controle da mídia pela sociedade”. “Controle” não é a palavra adequada. O certo é “participação da sociedade na discussão do problema da informação”... 
... é democratizar a discussão.
... e democratizar a informação. 
A Globo capitaneou o boicote.
Eu fui um dos participantes da luta pela criação do Conselho Nacional de Comunicação. Antes como sindicalista, depois como deputado federal... 
... então isso vem rolando há tempos.
Sim. Queríamos um Conselho dentro de um contexto mais amplo, que se chamava Políticas Democráticas de Comunicação. Um Conselho que reunisse o empresário, sindicatos, representantes da sociedade civil, da Universidade. Um espectro bem amplo, capaz de discutir a comunicação e, por que não?, dizer “olha, isso aqui está contra os interesses da maioria, esse tipo de jornalismo”. Isso foi para a Constituição de 1988. 

Está  na Constituição?
Está. Bem, levou 13 anos para ser regulamentado. Por quê? Porque os donos da mídia não querem, não têm interesse. Foi criado, aí botaram cunhas lá dentro, transformaram apenas em “órgão consultor”, sem autonomia. Bem, essa coisa foi regulamentada em 2001, funcionou mais ou menos, depois parou. Os representantes da área empresarial... enfim, faz três anos que não funciona. 
Os donos da mídia gorda não querem.
No ano passado me ligou o presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia, do PT, porque quem forma o Conselho, quem indica, é o Senado e a Câmara. E fui convidado para ser membro do Conselho. Aceitei. Só que depois ninguém mais falou comigo. 
Será  que existe ainda?
(Risos) Pois é. 
E a tevê?
De modo geral, ou faz esse jornalismo nojento, policialesco, de exposição de miséria, denuncismo irresponsável, de aprovação da violência contra o pobre na abordagem policial... 
... “pau neles”!
... isso. O sujeito pode ser criminoso ou não, ele é exposto. Depois, some a notícia, é uma irresponsabilidade, o sujeito foi execrado, apareceu como bandido e não era. Ou então é o jornalismo maquiado, enfeitado, espetacularizado. 
Quando trabalhei como editor no Jornal Nacional, sucursal da TV Globo São Paulo, fechei uma reportagem com a melhor declaração que encontrei no material trazido pelo repórter. Veio a editora-chefe, Diléa Frate, olhou, quando chegou no final, fez “hummm”, falou “não tem uma fala melhor?”, eu disse que não, ela pediu para olhar a fita original, encontrou outra fala, semelhante, mas sem graça. Ela me pediu para substituir, dizendo que o meu escolhido era “penoso” de ver. Era um crioulo, e lhe faltava um dente da frente, o outro era branco e tinha todos os dentes.
Em que ano foi? 
Em 1979.
Essa moça tinha sido presa como comunista e torturada, junto com o marido [Paulo Markum, atual presidente da Fundação Padre Anchieta, que opera a TV Cultura de São Paulo]. 
Vestiu a camisa da Globo: jornalismo higiênico, não?
Tive experiência igual. Saí da Abril em 1974 desiludido com a Realidade, porque propuseram novo formato, de assuntos leves. 
Zé  Hamilton Ribeiro pôs um apelido, não?
Era Realeções ou Selenidade. 
Qualquer semelhança com a Seleções...
Tinha oito anos de Abril, fui ser chefe de reportagem na Manchete de São Paulo, com o Salomão Schwartzman, Deus o tenha. Estou brincando, ele tá aí, mas saí por causa disso. Fui fazer matéria sobre São Paulo, mais uma daquelas “São Paulo grandiosa”. Tinha foto de multidão e falaram que era “gente muito feia”, fotos do Jean Solari [belga, trabalhou para Realidade também]. Mandei-os à puta que os pariu, por causa desse tipo de coisa, “ah, tem muito preto”. 

Retornamos então  à situação da “mente colonizada”.
É claro. E também, como o Amancio falou, é uma censura estética, eles acham que preto é feio! Principalmente preto pobre. 
Eles precisavam mudar de povo, não?
Um exemplo definitivo. Houve um crime em Moema [bairro classe média e classe média alta de São Paulo]. O crime do Bar Bodega. Bandidos invadiram, assalto e tal, mataram duas pessoas. Quando chega mais perto “deles”, há um clamor. A polícia correu atrás, como no caso da Escola Base. 
Aconteceu na Aclimação, bairro de constituição social semelhante à de Moema. A escola foi acusada de permitir abusos sexuais contra criancinhas, em 1999, caso em que a mídia gorda deitou e rolou em matéria de jornalismo marrom, acusando a torto e a direito, promovendo audiência e venda de jornais e revistas à custa de sensacionalismo da pior espécie. 
Não demorou, prenderam três negros da periferia. Apareceram nos jornais, a polícia pendurou um cartaz no peito deles, não sei se com números de fichados. Um advogado provou que eles eram inocentes do caso do Bar Bodega, a Justiça anulou o processo. E aí? Eles apareceram em posição humilhante. Foram vítimas de um jornalismo de merda. Sem compromisso com a realidade. 
E depois da revista Manchete?
No final de 1974, veio o convite para ser candidato a presidente do Sindicato.
Chegamos a um marco na história da República brasileira, o 25 de outubro de 1975, quando a ditadura assassinou o Vlado, com você presidente do Sindicato dos Jornalistas no Estado de São Paulo.
Pois é, eu registro a presença do Prudente de Morais Netto aqui, nesta cadeira, o Wilson Gomes ali, o Thomaz lá... 
Vamos falar de um jornal, que eu e o Amancio fazíamos na ocasião com outros, Hamilton Almeida Filho, Narciso Kalili, Paulo Patarra...
O ex-. 
Fizemos a única reportagem sobre a morte do Vlado. E vamos esclarecer uma história. No dia do fechamento apareceu na redação um grupo, com Wilson Moherdaui, Ricardo Kotscho, Sérgio Buarque de Gusmão, sua então mulher Adélia Borges, mais uma pessoa que não lembro, talvez Pola Galé, não posso afirmar, vinham como “comissão” do Sindicato pra gente não publicar a reportagem A Morte de Vlado, alegando, e eles batiam muito nisso, que era até para nossa salvaguarda física. Você teve conhecimento disso?
Não. Aliás, as coisas que me irritaram, não no torvelinho, mas mais tarde, ao ler esta matéria, foi isto. Era exatamente o contrário do pensamento do Sindicato: era pra publicar! Uma das coisas que hoje vim preparado era para saber quem era esse grupo. Nenhum era da diretoria. Mesmo que fossem, não foram autorizados a isso. 
Tomaram a iniciativa de um grupo?
Talvez até de partido político. 
Partidão?
É provável. [Partidão: PCB, que apoiou Audálio para a presidência do Sindicato.] O Kotscho não era da diretoria, mas foi um dos jornalistas mais presentes naquela crise. Publicou reportagens no Estadão. Pode ser que houvesse alguém da diretoria ampla nessa comissão, mas não autorizado. 


O que mais significou sua chegada à presidência do nosso Sindicato? Até ali haviam passado pelegos, não?
Diria que alguns não, mas a maioria sim, eram pessoas no mínimo omissas em relação à ditadura – essa ideia-mestra: sindicato não tem que se meter em política! (Risos) E nós achando que era o contrário! Então, o Sindicato me furtou metade da carreira – não fiz mais jornalismo como gostava de fazer – mas teve grande importância na minha história, e na história do país. 
Por que aquilo foi possível?
Olha, uma coisa que me deixa puto da vida... não se pode tocar na história recente do país, na ditadura militar, em que o Caso Herzog não apareça... 
... é o chamado divisor de águas.
Bom. Aí, vêm até colegas, do Sindicato, dizer que “a sociedade civil reagiu ao assassinato do Herzog”. Claro que reagiu! Mas reagiu por quê? Porque daqui, desta sala, partiu a decisão de denunciar! Antes do Herzog e depois do Herzog, as pessoas assassinadas, como foi o caso do operário Manuel Fiel Filho, eram sepultadas em silêncio. O corpo do Fiel Filho, em janeiro de 1976, foi entregue à família com a ordem de que não poderia haver velório, e sepultar o mais rápido possível. Já teve repercussão porque o caso Herzog abriu mais espaço nos jornais. Mas houve uma missa de sétimo dia na igreja do Carmo com a presença de apenas cem pessoas. Por quê? Porque não houve mobilização. A sociedade civil estava indignada, mas não foi mobilizada para protestar contra o assassinato do Manuel Fiel Filho. E do Herzog, sim! Na manhã de 26 de outubro de 1975, já havia uma nota pré-redigida pelo Fernando Pacheco Jordão e eu. 

Assassinaram Vlado na tarde de 25, sábado, e a notícia começou a circular no início da noite. 
Vieram todos para cá, a diretoria virou ampla. Participaram das reuniões pessoas que não pertenciam à diretoria eleita. Perseu Abramo era um. E outros mais. Davam palpite, influíam! Trouxemos a nota para aprovação. Já estavam nesta sala umas trinta pessoas. A nota foi discutida quase numa assembleia. Tinha gente querendo dizer que íamos “derrubar a ditadura”. A nota, nunca se disse, foi um documento fundamental. 
O Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo cumpria “o doloroso dever de comunicar a prisão e a morte do jornalista Vladimir Herzog (Vlado) ocorrida nas dependências do Departamento de Operações Internas (DOI), do II Exército, em São Paulo”. A nota descreve fatos, desde sexta à noite, quando agentes do DOI procuraram Vlado na TV Cultura, onde ele ia pôr no ar o programa Hora da Notícia. Com intervenção de superiores de Vlado, houve um “acordo de cavalheiros”: Vlado ia apresentar-se espontaneamente para depor no DOI na manhã de sábado. E, no meio da tarde, estava morto – por suicídio segundo a nota do II Exército, ao que a nota do Sindicato contestava:
“... a autoridade é sempre responsável pela integridade física das pessoas que coloca sob sua guarda”.
O Sindicato conclamava todos os jornalistas “sem exceção” a comparecer ao sepultamento na segunda-feira, às 10 e meia da manhã, no Cemitério Israelita (Vlado era judeu). Mas antes denunciava e reclamava das autoridades “um fim a esta situação em que jornalistas profissionais, no pleno, claro e público exercício de sua profissão, cidadãos com trabalho regular e residência conhecida, permanecem sujeitos ao arbítrio de órgãos de Segurança, que os levam de suas casas ou de seus locais de trabalho, sempre a pretexto de que irão apenas prestar depoimento, e os mantêm presos, incomunicáveis, sem assistência da família e jurídica, por vários dias, e até por várias semanas, em flagrante desrespeito à lei”. E protestava:
“Trata-se de uma situação, pelas suas peculiaridades, capaz de conduzir a desfechos trágicos, como da morte do jornalista Vladimir Herzog, que se apresentara espontaneamente para um depoimento.”
A nota não falava explicitamente em assassinato, mas nem era preciso. Estava nas entrelinhas o que todos nós sabíamos: haviam matado Vlado. Dois jornais não publicaram a nota, Diário Popular e Folha da Tarde, do Grupo Folhas, cujo editor conhecido como Torres subiu numa mesa e discursou para os chefiados que aquele era o fim de todos quantos pensassem como Vlado, “acusado” de pertencer ao Partido Comunista. A manchete deles foi “Comunista suicida-se na prisão”. 

O tom da nota era de denúncia mesmo.
O que havia na época não eram prisões, eram sequestros. Nós matamos a questão, ao convidar a todos para o sepultamento. Porque eles iam tentar sepultar antes da hora marcada pela nota. E mais, pedimos aos colegas que publicassem notas fúnebres em seus jornais, em nome dos funcionários. E todos publicaram. Não é à toa que no sepultamento tinha quase mil pessoas. Só faltou uma nota da cúpula da comunidade judaica. Aliás eles tentaram evitar que o rabino Sobel participasse do culto ecumênico. 
Na catedral da Sé, no fim da semana seguinte.
Foi. Mas quero dizer que, antes da morte do Vlado, o Sindicato já estava no olho do furacão. 
Sua gestão começa quando?
Em maio de 1975. A cada jornalista preso, a gente fazia uma nota. O II Exército começou a provocar. Quer dizer, a gente estava na guerra já. 
Eles resolveram cair em cima de quem dava informações.
Claro. Acharam que tinham que liquidar até fisicamente, como fizeram.  
Houve outros antes e depois do Vlado, Luiz Merlino...
Foram cerca de vinte jornalistas, Bonfim, Jaime Amorim de Miranda, desapareceram, até hoje não se sabe o que fizeram deles. O Vlado é a gota d’água. 
Você  teve encontros com o comandante do II Exército, general Ednardo, não?
Sim, era convocado. Mas depois do Vlado ele cortou relações. Quando mataram o operário Fiel Filho e ele caiu, o substituto, general Dilermando Gomes Monteiro, veio nos visitar. O Sindicato ganhou muita força. 

E houve gente que não queria que você recebesse o Dilermando, não?
É, era um milico, achavam que não devíamos receber. Mas foi uma demonstração da nossa força, porque outros sindicatos estavam amordaçados. E as coisas começaram a se abrir. Bom lembrar que o Lula foi eleito presidente dos metalúrgicos de São Bernardo no mesmo mês, e tomou posse no mês seguinte, em maio, nós aqui e ele lá. 
Havia um contexto, as coisas não estavam desconectadas.
Não! Nada acontece por acaso. 
E houve um evento de apoio aos metalúrgicos promovido pelos jornalistas, aqui na igreja da Consolação.
No final do meu mandato, em 1978, havia uma série de organizações agindo. O segredo do Sindicato – muita gente diz que era o Partidão [Partido Comunista Brasileiro] por trás, não é verdade – o segredo era a gente defender a unidade, o plural. Havia gente de todos os grupos, AP [Ação Popular], PCdoB [Partido Comunista do Brasil]. Havia reuniões diárias no auditório depois da morte do Vlado, e participaram pessoas também de outras categorias [e gente independente de partidos ou ideologias]. 
Estávamos em assembleia permanente.
Nós chamávamos de reuniões informais. Se falasse assembleia, o Sindicato seria fechado no dia seguinte. A legislação não permitia “assembleísmo”. Para realizar assembleia, tinha de comunicar com tantos dias de antecedência, tinha de publicar, não podia ter gente que não fosse do Sindicato. 
Era pra impedir mesmo...
Na segunda-feira à noite, depois do enterro do Vlado, surgiu a ideia da missa de sétimo dia na Sé. Um diretor, o Hélio Damante, editor de religião do Estadão, disse: olha, não pode ser missa, o Vlado era judeu. Ele então propôs o culto ecumênico. 
Entra dom Paulo Evaristo Arns na história.
Há uma versão por aí  de que ele nos procurou, quando foi o contrário. E ele aí sim abraçou a ideia do culto ecumênico. O rabino Sobel hesitou, foi pressionado a não participar, mas foi. E o reverendo James Wright, que tinha um irmão morto pela ditadura. Mas tudo isso tinha uma trincheira, era esta sala, de onde partiu o combate. E foi ao mesmo tempo o vetor da indignação que estava na cabeça das pessoas. 
O culto ecumênico gerou uma operação bélica gigantesca, o coronel Erasmo Dias [secretário da Segurança do governo Paulo Egidio Martins] batizou de Operação Gutenberg.
Uma “homenagem” aos jornalistas. Trezentas e tantas barreiras impedindo a chegada de gente. Mesmo assim estavam oito mil pessoas lá. O autoritarismo é burro, não? As pessoas podiam vir a pé, como vieram. De metrô. O Erasmo, que morreu outro dia, havia dito que “os comunistas” estavam preparando grandes ações, mas ficassem certos de que, antes que o jantassem, ele os almoçaria. 

Depois disso, a imprensa ficou quieta de novo.
Ao contrário. O Estadão não tinha mais censor na redação desde janeiro de 1975. A Folha não tinha censores, mas também não precisava (risos). O Estadão na morte do Herzog publicou um editorial condenando, Os limites da tolerância. E mesmo antes da morte do Vlado, todo jornalista que ia preso o Sindicato fazia uma nota, e os jornais publicavam. Passaram a abrir espaço. 
Esses patrões todos deram apoio total ao golpe militar.
Mas perceberam que passaram a vítimas também. 
Um papel importante para que matassem o Vlado foi do Cláudio Marques, não?
Sim, mas havia outros jornalistas fazendo campanha, já no dia seguinte à posse do Vlado, porque foi ao ar o tal documentário sobre o Vietnã. 
Cláudio Marques escrevia no jornal semanal Shopping News, distribuído de graça nos fins-de-semana, no centro e em áreas “nobres” de São Paulo. Ele passou a referir-se à TV Cultura como “Viet-Cultura”. E pedia as cabeças dos que trabalhavam na Hora da Notícia, telejornal noturno da TV Cultura criado por Fernando Pacheco Jordão, agora dirigido por Vlado. 
O documentário sobre a guerra do Vietnã era da Visnews, agência inglesa, insuspeita.
E aquilo foi ao ar à revelia do Vlado! Ele era uma pessoa muito equilibrada. 
Então foi um agente provocador que pôs aquilo no ar!
Claro. Gente descontente com a ascensão do Vlado, alguém preterido que queria o cargo... Walter Sampaio... 
Orlando Duarte?
E eles desconfio que até  estavam combinados que aquilo iria ao ar. 
Hummm... “nós pomos no ar, e vocês caem matando” – aliás caíram matando, literalmente. Mas e depois? O que aconteceu na sua vida profissional?
Uma vez eu disse “sou um líder construído pelos liderados”. Em 1978, chegaram para mim e disseram “você precisa sair para deputado”. Começou com o Freitas Nobre, está ali o retrato dele como ex-presidente do Sindicato, e deputado federal eleito por jornalistas. Eu disse “Freitas, a gente vai dividir o eleitorado”, e ele “que nada, dá para eleger os dois”. E fui eleito, com mais votos que ele, pelo MDB. 
MDB: Movimento Democrático Brasileiro, de oposição “consentida” à ditadura; o partido oficial da ditadura era a Arena, Aliança Renovadora Nacional. 
Tive participação na luta pela anistia, contra a censura, na luta dos operários – o movimento sindical ressurge depois da morte do Herzog. 

As primeiras greves.
Em 1977, a primeira foi na Scania Vabis, no ABC. Propus, e o MDB aceitou, uma comissão de recepção aos exilados. Na aflição de voltar, muitos chegavam antes da anistia e eram apanhados no aeroporto [a anistia veio no segundo semestre de 1979]. 
E mais para o fim da ditadura?
Fui presidente da Fenaj [Federação Nacional dos Jornalistas], de 1983 a 1986, eleito por voto direto, viajei o país inteiro. Fui presidente da Imprensa Oficial no governo Montoro [1983-1987]. Fundei então uma empresinha, voltada para livros. 
E a Associação Brasileira de Imprensa, a ABI?
A ABI, apesar de nacional, é  muito no Rio. O Sindicato até havia proposto que houvesse representação em São Paulo. Então em 2005, depois da morte do Barbosa Lima Sobrinho, houve a movimentação para renovar. Saiu o Maurício Azedo para presidente, o Milton Temer vice [Maurício e Milton fizeram trabalhos para a revista Realidade na década de 1960]. Logo houve uma briga interna, o Temer saiu com mais quatro diretores. 
Por quê?
Pelo autoritarismo do Maurício. No tempo todo que fiquei cuidando da representação de São Paulo [2005-2009], não houve uma reunião sequer, que seria o mínimo a fazer. E o Maurício deu o golpe para obter um terceiro mandato. 
Ele e o Uribe, na Colômbia.
É. Em 2007, comecei a perceber coisas estranhas. Quando houve o sequestro do repórter da Globo, propus que se reunissem várias entidades da nossa área, fotógrafos, etc., e fizemos uma nota. Mandei pro saite da ABI e não saiu. Pensei: alguma coisa está errada. Falei com a Solange, que cuidava do saite, ela desconversou, terminei sabendo que ela precisava falar com o Maurício para publicar. Aí vi vários golpes. A eleição para o Conselho era uma farsa, saía tudo da cabeça do Maurício. 
Um parêntesis que tem a ver. Quando o Palmério e eu fomos agredidos em São Luís, em novembro de 2009, no lançamento do livro Honoráveis Bandidos, escrevemos uma nota denunciando e enviamos para várias entidades, inclusive a ABI. Não recebemos de volta sequer uma linha, aos menos de solidariedade.
Tá explicado. Uma vez falei pra ele “isto é stalinismo”. Ele respondeu “quer dizer que o herói que derrotou o nazismo”... ora, quem derrotou o nazismo foi o povo russo. Então veio o Salão do Jornalista Escritor em 2007, do qual você participou, um baita sucesso. Isso mexeu com ele em todos os sentidos. Começou a questionar, que houve pagamentos indevidos, um deles o Elifas Andreato – que apenas cobrou o material da exposição dele, seis mil e poucos reais. 
Elifas, um dos maiores artistas gráficos do país, edita o Almanaque Brasil de Cultura Popular, que circula a bordo dos aviões da TAM e no qual assino com a colega Katia Reinisch a seção Em Plantando Tudo Dá, sobre plantas do Brasil. 
Se o Elifas fosse cobrar a curadoria e tudo mais, podia ter cobrado trinta mil reais. Mandei à puta que o pariu, como ele ousou? Falei “estou aqui pendurado em cheque especial”, e ele “não estou fazendo acusações”, “então que merda é essa?”, “é que com os amigos as pessoas fazem liberalidades, porque o Jal ganhou para participar da organização”, “e ele ia trabalhar de graça?”, e disse que o Elifas devia ter pago para fazer a exposição no recinto porque foi “promovido” como artista! Coisas desse tipo! Fiz a carta-renúncia e ele não publicou uma linha. Durante quatro meses foi fato ignorado pelos colegas. E havia uma comissão de revisão dos estatutos, fizeram uma emenda, revogando o artigo 44, que proíbe a reeleição pela segunda vez. 
Então ele vai ser presidente vitalício.
E quantas pessoas votaram nisso? Oitenta e poucas. Numa entidade com três mil associados! Ele decide tudo. E uma das ideias que eu tinha era que as eleições tivessem voto por correspondência, do país inteiro. Imagine se eles querem isso! Se eu sou afiliado, tenho de ir ao Rio votar. Só vota lá! 
E o Konder? Me disseram que ele entrou na representação te atacando.
Não, não. Me informaram que numa reunião do Conselho, no Rio, ele falou que visitou nossa sede em São Paulo e ficou espantado com a “suntuosidade”. O que é que tem? Uma mesa para reuniões, menor que esta do Sindicato, outra menor ainda acolá e um painel na parede. E ele disse que “podiam alugar uma coisa mais modesta”. Mandei um bilhete ao Konder, manuscrito, que encerro dizendo “sempre ouvi que ex-comunistas são pessoas complicadas, mas não pensei que fosse tanto assim”. 

Amancio: O Konder virou malufista, foi secretário da Cultura do Maluf na Prefeitura. E levou pra ABI o Duque Estrada [também ex-comunista, chefe de arte da Carta Capital].
Essa não entendi. Essas pessoas que estão aí, e no Rio, o Ziraldo – que é meu amigo e tal – é um grupo de paus-moles. Porque não houve nenhuma reação, eu me senti completamente... 
Mas não  é em certo sentido uma coisa retrô?
O jornal da ABI tem cara de anos 1950. A diagramação. Um horror. E está me censurando! Em 2009, na entrega do Prêmio Herzog, com a participação do Instituto Herzog, que o Ivo Herzog cuida, me prestaram uma homenagem, me entregaram uma placa. Eles noticiaram tudo, menos a homenagem – nem citaram meu nome. 
Amancio: Você  viu quantas vezes o Maurício aparece no jornal da ABI?
Nas comemorações do centenário eu contei vinte e tantas fotos dele no jornal. [Ele, a mulher, a filha lendo o jornal, ele recebendo honrarias...] Eu me lembrei do Carlos Joel Nelli (gargalhadas). 
Figura cômica do jornalismo nos meados do século 20. Aparecia em quase todas as páginas da Gazeta Esportiva, que ele editava. 
Os cargos não são remunerados?
Não, não. 
Amancio: Mas então a ABI é o quê? Uma academia?
A ABI teve uma história. Eram pessoas importantes que dirigiam, Prudente de Morais Netto, Barbosa Lima Sobrinho, Herbert Moses – deste, politicamente não quero nem falar, mas era uma entidade. Perto deles o Maurício é um bosta. A ABI é uma marca. Estava na campanha O Petróleo é Nosso. Uma manifestação da ABI tinha sempre um peso muito grande. Tanto que na ditadura jogaram bomba lá. 
E hoje? O que ela é?
(Abre as mãos em gesto interrogativo.)

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O Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo, hoje presidido por José Augusto Camargo (Guto), no centro da foto abaixo.
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Um comentário:

  1. Myltainho

    Vocês devem ter enlouquecido. De onde vocês tiraram que eu participei de uma comissão que foi sugerir que não se publicasse a matéria sobre a morte do Vlado? Que loucura é essa? Não só não estava nessa comissão, como ajudei na matéria, como colaborador do -Ex, fazendo pesquisa no arquivo do Estadão. Essa acusação é muito grave e você me conhece muito bem pra saber que eu jamais faria um absurdo desses.

    Wilson Moherdaui

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