sexta-feira, 12 de março de 2010

HERANÇA MALDITA 

Entrevista com Fernando Pacheco Jordão



O jornalismo de televisão pública da TV Cultura de São Paulo, comandado por Fernando Pacheco Jordão, foi um marco. Provocou demissões em 1974, inclusive a do Jordão, meu mestre de televisão, e a minha, destruiu uma equipe de bambas e levou à morte Vladimir Herzog, o Vlado, assassinado em 25 de outubro de 1975 nas câmaras de tortura do Exército. Jordão, junto com Herzog, tinha aprendido telejornalismo trabalhando na BBC de Londres, famosa pela exemplar conduta como mídia de massa independente, embora financiada pelo Estado.
Ele lançou em 1979 Dossiê Herzog – Prisão, tortura e morte no Brasil, em que narra episódios daqueles tempos. Mauro Malin, jornalista, co-fundador do Museu da Pessoa, entrevistou Jordão em vésperas do 30º aniversário de sua demissão da TV Cultura, por pressão dos militares golpistas de 64. Em destaque, acrescento informações à entrevista, que tomei a liberdade de “enxugar” e ressaltar a denúncia de quem viveu aqueles momentos de chumbo. 
“Era uma época em que a informação era considerada subversiva” 
Como vocês conseguiram fazer aquele jornalismo? O governo era nomeado...
A TV Cultura foi criada no governo Abreu Sodré (1967-71). Começamos no governo Laudo Natel (71-75). Depois veio o Paulo Egídio (75-79). Havia contradições. O secretário da Cultura de Paulo Egídio era José Mindlin, um democrata. Eu e o Vlado éramos dois profissionais chegados de Londres, onde tivemos formação na BBC, tevê pública. Aqui se tinha o conceito equivocado de tevê estatal. Vínhamos com a idéia de trabalhar com o conceito de tevê pública, jornalismo independente. Coisa um pouco quixotesca: em plena ditadura militar.
Quem tinha preocupação com o que faríamos era o então presidente da Fundação Padre Anchieta, José Bonifácio Nogueira. Preocupado com a censura. Como me considerava um perigoso comunista... antes de ir para Londres eu tinha trabalhado na TV Excelsior, que tinha apoiado João Goulart. Eu tinha sido preso em 1964, como toda a equipe da Excelsior. Ele dizia: "Tevê educativa não é para dar opinião." Eu dizia: "O bom jornalismo não tem que ser opinativo. Quem opina é quem recebe a informação. O que um jornalismo educativo tem que fazer é fornecer ao espectador elementos para que tenha condições de formar sua própria opinião, seu próprio conceito sobre o que está acontecendo." E ele dizia: "Sim, mas isso pode ser subversivo." E eu: "Talvez o senhor tenha razão." Na época, tudo que não trabalhasse de acordo com a cartilha dos militares dava problema. Fiz muitos programas de aulas e documentários que deram problema com a censura. 
Quanto tempo você  ficou preso?
Fiquei 48 horas no Dops. Já tinha contrato com a BBC. Fiquei em Londres quatro anos. Vladimir foi trabalhar na mesma função: produtor e locutor de rádio. Fizemos um curso de programas de tevê, com bolsa, com o compromisso de trabalhar numa tevê pública. 


Jordão e Vlado na BBC, 1966 (foto tirada durante 
uma transmissão noturna do serviço brasileiro)

Você  volta e encontra uma ditadura atroz. Infundiu medo em milhões de pessoas, pessoas sumiam.
Quando amigos nos visitavam em Londres, se espantavam da gente falar em tom normal na rua, num restaurante, achavam perigoso, alguém poderia ouvir. Ao voltar, vimos que havia razões para isso. 
A iniciativa de fazer esse tipo de jornalismo tem a ver com o fato de que não havia mídia de oposição?
Nós já fazíamos na TV Excelsior. 
A Excelsior pertencia ao Grupo Simonsen, de empresários nacionalistas, controlava dezenas de empresas, como a Panair, uma de nossas maiores companhias aéreas. A ditadura acabou com a Excelsior para o bem da Globo e cortou “as asas da Panair” para o bem da Varig. 
Não dependia muito de aparato tecnológico.
Dependia de conceito. A TV Cultura foi a primeira a introduzir jornalistas que não faziam comentários opinativos. Os editores é que contextualizavam, situavam o espectador dentro daquele momento. O Jornal Nacional dava cotação do ouro, do dólar, das Bolsas. Eu falava: as pessoas devem ficar perplexas, sem saber o que isso significa. E punha no ar o Marco Antônio Rocha, editor de Economia, situando aquilo na vida das pessoas. Amanhã, quando você sair de casa, o que isso significa para você. 
Era uma experiência única.
A gente começou com jornal semanal em 1972, Foco na Notícia. Três ou quatro assuntos, 40 minutos, às nove da noite. 
Um homem, Cláudio Marques, e outros faziam acusações contra o Vladimir e a equipe. Quando aquele jornalismo começa a incomodar?
Incomoda menos pela audiência e mais por ser um jornalismo insólito, numa emissora considerada oficial, e talvez feito por jornalistas ocupando cargos que eles gostariam de estar ocupando. 
Cláudio Marques escrevia em 1975 no jornal dominical Shopping News, distribuído gratuitamente em regiões “nobres” de São Paulo, a Coluna Um, em que acusava a TV Educativa de fazer “a apologia do Vietcong” (o programa tinha passado um filme da agência inglesa Visnews). Em 28 de setembro, quatro semanas antes do assassinato de Vlado (25 de outubro), Cláudio Marques dedou:
"A infiltração (a essa altura não é infiltração, é domínio total, ou quase...) da esquerda contestatória no sistema e na democracia em vários escalões, só  não vê quem é conivente ou burro. O caso da TV Viet-Cultura extrapolou. E muito. (...) Eu não exijo atestado ideológico de jornalista, nem quero fazer o jogo de fascistas. Mas é cretino se admitir o domínio total do PC nos jornais, revistas e TVs." 
Você  se lembra de alguma edição de que gostou?
Eu me lembro da cobertura da Guerra do Vietnã. Demos tratamento digno. O Consulado americano se queixava. Isso sob muita pressão quando passou a diário, a Hora da Notícia, em 1973. E passou a haver expectativa do governo de que a gente desse cobertura maior ao palácio. Deixei claro que seria ineficiente virar órgão de divulgação do palácio. Perderia credibilidade. Combinei que quando o assunto merecesse cobertura, eu ia fazer reportagem. E eu procurava fazer bem feito. Até crítica, às vezes. Mas era duro convencer esse pessoal de que era necessário. O duro era convencer o guarda da esquina. 
Referência a episódio de 13 de dezembro de 1968, quando o segundo general de plantão da ditadura, Costa e Silva, reuniu os ministros como cúmplices do AI-5, Ato Institucional 5, que daria aos militares poderes de vida e morte sobre todo e qualquer cidadão. O vice, o mineiro Pedro Aleixo, foi contra; e, questionado pelo ministro da Justiça Gama e Silva se desconfiava “das mãos honradas do presidente”, que aplicaria o Ato, respondeu que não, “eu desconfio é do guarda da esquina”. 
Quem era, no caso?
O guarda da esquina mais difícil era nossa diretora Nídia Lícia. Abaixo do presidente da Fundação havia a Divisão de Ensino e a Cultural, dirigida pela Nídia Lícia. Ela me chamava de manhã, o pessoal já sabia que era trolha. Ela dizia: "Fernando, por que você me cria tanto problema? A gente assiste televisão de noite, o Brasil é cor-de-rosa. Assiste a TV Cultura, o país é negro. E o Consulado americano não pára de ligar para cá." Minha principal defesa sempre foi dizer: "Pegue o nosso jornal, não tem um adjetivo. São matérias objetivas. Só tem informação." Eu brigava com o pessoal: "O primeiro fdp que me puser um adjetivo na matéria está na rua." O pessoal compreendia. 
E aprendia.
É, não é fazendo panfleto, não é no berro que se convence. É no argumento. 
Há  uma passagem no livro (p. 170, 2ª ed.) em que você retorna a março de 1974, quando o presidente da Fundação Padre Anchieta o demite: o telejornal era “subversivo”. Mas seu relato mostra que foi uma experiência pioneira de jornalismo público.
Era um jornalismo de resistência. Não era ligado a partido político, mas era político. Éramos um grupo de jornalistas contra a ditadura militar. Conscientemente, fazíamos um jornalismo engajado. Não era adjetivado. Subversivo na medida em que era jornalismo de conteúdo altamente informativo e contextualizado, numa época em que a informação era considerada subversiva. 
Você  foi obrigado a demitir alguém?
Não. Mas quando me cortaram a cabeça cortaram a de todo o mundo. Minha demissão foi tosca. O presidente, Antônio Guimarães Ferri, me parou no pátio, a gente estava esperando umas câmeras, de repente ele falou: "Aliás, o senhor não trabalha mais aqui." "Como?" "Tenho recebido muita pressão do Segundo Exército para demitir o senhor. Mas se o senhor repetir isso aí fora eu desminto." Evidentemente não se podia atribuir essas demissões ao Exército. Ele me demitiu em março de 1974 e três meses depois a equipe inteira. 
Em junho de 1974, um ano depois de entrar para a Hora da Notícia a convite de Jordão, demitido três meses antes, chego à redação para mais um dia de trabalho como editor de reportagens, sento e passo a ler jornais, quando aparece um dos interventores, o comentarista esportivo Orlando Duarte. De terno e gravata, me repreende por apoiar os pés numa mesinha baixa onde ficavam jornais e revistas, gesto que muitos de nós adotavam. Mandei ele ir passear e continuei lendo. No dia seguinte, outro interventor, Enildo Franzosi, me demitiu – este me demitiu duas vezes na vida, a primeira na Folha em 1962, por eu ter participado da histórica greve de 1961, que entre outras conquistas nos trouxe o piso salarial da categoria. A “limpeza” prosseguia: cairiam fora os repórteres Rose Nogueira, por ironia três décadas depois presidente do Condepe, Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana; João Baptista de Andrade, mais tarde cineasta e secretário da Cultura do Estado de São Paulo; Georges Bourdoukan, hoje escritor; o editor Palmério Dória, com quem eu escreveria o best-seller de 2009, Honoráveis Bandidos – Um retrato do Brasil na era Sarney; entre outros. 
As vagas foram preenchidas por que tipo de gente?
Gente mais maleável.
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Fernando Pacheco Jordão, além de diretor do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo no período em que ocorreu a prisão e morte de Vladimir Herzog era também seu amigo íntimo.
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As fotos que ilustram esta entrevista foram reproduzidas do livro Dossiê Herzog - Prisão, Tortura e morte no Brasil , de autoria do próprio Jordão (Global Editora, 1979)

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