quarta-feira, 21 de abril de 2010


VIDA DE JORNALISTA É UM ROMANCE
ROSE NOGUEIRA – PARTE 1

Por Mylton Severiano textos
e Amancio Chiodi fotos


“Eu tenho 64 anos mas não pareço”, diz Rose, que tem mãe viva aos 81 anos quando a entrevistamos em sua casa nas Perdizes, bairro classe média paulistano. À noitinha, quando chego, latem dois vira-latas catados na rua – “sempre gostei de cachorro”. Os bichos deitarão nos sofás em que sentaremos para conversar.
“O Rogério Magri tinha razão ao dizer que cachorro é um ser humano como qualquer outro”, lhe digo, e ela ri concordando.
Magri, ex-dirigente de entidade operária, ministro de Fernando Collor, o Breve, disse aquilo sobre seu cachorro flagrado indo ao veterinário em carro oficial. A imprensa caiu de pau na inocente árvore se esquecendo da corrupta floresta.
Rose me mostra samambaias, antúrios, orquídeas, trepadeiras, a Praça Che Guevara no quintal, inaugurada com a presença de gente grada, senador Eduardo Suplicy, cônsul de Cuba. Passarinhos a frequentam, saíras, sabiás, beija-flores, e ela sabe o que cada ave aprecia, e lhes propicia seus deleites.
Que mulher bela e simples essa que criou o programa TV Mulher na Rede Globo na década de 1980 – lançou pioneira seção de sexualidade com a psicóloga que se tornaria deputada, prefeita de São Paulo, ministra do Turismo: Marta Suplicy, ex-mulher do senador que compareceu à inauguração da Praça Che Guevara.
Rose acaba de deixar a presidência do Condepe, Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa, e trabalha na TV Brasil. Faz parte do grupo Tortura Nunca Mais.
                                                                     Arquivo pessoal
Na infância ela adorava falar “metalúrgicos”, gostava deles; o padrasto, que ela chama de pai, era vogal da Justiça do Trabalho pelo Sindicato dos Metalúrgicos do Estado de São Paulo. Órfã de pai aos 4 anos por uma tragédia, a brasileiríssima menina descendente de italianos, portugueses e espanhóis cresceu em bairros operários. Nos recebeu com um caldo verde português, na sexta-feira 16 de abril de 2010, com mais dois convidados, a colega jornalista Wilma Amaro e o metalúrgico Carlão. Depois que Rose pôs o caldeirão no fogo, passamos a conversar, e ressalta na narrativa a lição de seu primeiro mestre no jornalismo, um trotskista.
“Matéria que não tem
fim, terminada está.”



Nasci em Jacareí, na casa do meu avô, onde é hoje o Paço Municipal [Vale do Paraíba, São Paulo]. Meu avô espanhol tinha uma empresa de transporte, Estrela do Norte. Minha mãe era adolescente, 16 anos. Minha avó [paterna], sogra da minha mãe, levou ela lá pr’eu nascer. Nasci dois dias depois que ela fez 17.

E sua mãe?
É do Cambuci [bairro colado à Praça da Sé, centro da capital paulista]. Filha de operários da indústria têxtil, neta de italianos que vieram ainda com Dom Pedro em Petrópolis. Da primeira leva, eram vênetos, minha avó era de Verona.

E o pai?
É filho de espanhóis. Galegos. Minha avó era da Andaluzia. Meu pai, Bernardo Nogueira Mattos, quando eu tinha 4 anos, em 1950, foi salvar um caminhão do meu avô que tinha tombado na Rio-São Paulo, em Itaquaquecetuba. E deu de cara com um ônibus da Pássaro Marrom. Morreu ele e o motorista. E minha mãe estava grávida do meu irmão. As primeiras imagens que tenho são dele, de macacão, saindo e dando tchau, e me lembro do velório na mesa da sala, o caixão roxo enfeitado de dourado. Estava chovendo e minha mãe usava uma capa, e não olhava pra mim. Meu pai era corinthiano, todo o mundo falava do Corinthians pra mim. Me lembro da missa, todos de preto. Eu de branco com uma fita preta, e sempre associava ao Corinthians – eu vestida de Corinthians. Meu avô vendeu os caminhões e foi plantar alho e cebola em Carapicuíba [oeste da Grande São Paulo]. Fui morar com a família da minha mãe, no Ipiranga. Minha mãe ia na padaria e minha avó me obrigava a ir com ela, eu não gostava, mais tarde entendi: nas famílias italianas, mulher moça viúva é um perigo.

Do que eles viviam?
Eram tecelões, minha avó trabalhava na Santista. Meu avô bebia muito. Também trabalhava na fábrica. Jogava bocha de noite. E, quando chegava, brigava sempre com minha avó. Me lembro que levantavam quando estava escuro. Tomavam o bonde na Rua do Manifesto, eu chorava porque queria ir, pegar o bonde pra mim era passear. Meu avô fazia balão e ia com a gente soltar no “morrinho”, um terreno em declive.

Essa casa era...
... era térrea, quintal grande, me lembro do dia que meu irmão nasceu, porque não me deixaram entrar. Tinha a tia Emília, muito engraçada, acho que fiquei com ciúme de ouvir um nenezinho lá dentro, ela falou: “Não! É um porquinho que tem lá, vou passar ele na farinha e pôr no forno.” (Risos.)

E sua mãe?
Lembro da minha mãe casando de novo. Ela é mais louca que nós. Tinha 22 anos e casou com meu padrasto, um encanto de pessoa, mas tinha 51 anos, 29 mais que minha mãe. Quem arranjou o casamento foi minha avó. Dizia que uma pessoa de mais idade ia saber cuidar dos filhos da minha mãe. Tinha medo que ela casasse com algum...

Estróina...
... é, que maltratasse a gente, e esse homem já tinha seis filhos, era vogal da Justiça do Trabalho, pelo Sindicato dos Metalúrgicos do Estado de São Paulo. Mudamos para a Desembargador do Vale, 666, a casa está lá ainda, na Vila Pompeia. Daí nasceu minha irmã Roseli, e ele tinha filho da idade da minha mãe. A Rosangela, que hoje vive na Alemanha, já nasceu na Vila Olímpia, de onde saí só pra casar.
                                                                     Arquivo Pessoal
Vamos dar umas pinceladas na sua escolaridade, e gostaria de recuperar como foi que você virou Rose Nogueira.
Não houve nada de pais, nem de partidos políticos, mas eu entendia tudo de trabalhismo, do PTB, o Partido Trabalhista do Getúlio, por causa do padrasto. Sindicato pra mim era coisa corriqueira. Nós íamos ao médico do sindicato, dentista do Sindicato dos Metalúrgicos, no começo da Rangel Pestana [perto da Praça da Sé, marco zero da capital paulista]. Meu padrasto tinha algo com o Iaptec, Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Trabalhadores em Transporte de Cargas, e foi por isso que ele conheceu minha mãe, ela ia receber pensão lá.

E as primeiras leituras?
Meu padrasto trazia a Última Hora todo dia. Cresci lendo o Arapuã [Sergio Andrade; assinava a coluna Ora, Bolas! e, quando a ditadura acabou com o jornal, se tornou publicitário], Nelson Rodrigues – A vida como ela é; “As Certinhas do Lalau” [na seção de Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo de Sérgio Porto, em que ele publicava uma foto erótica de alguma “gostosa”]. Eu acompanhava as reportagens, sabia tudo que estava acontecendo de trabalhismo. Minha avó operária tinha o retrato do Getúlio em cima da cama.

Você percebeu o suicídio do Getúlio? Estava com oito anos, não?
Oito anos, percebi sim, não houve aula, vi aquele tititi. E havia as casas do Iaptec, fui criada numa, na Vila Olímpia, casas de classe média, quintal grande. Elas ainda estão lá, na Rua Baluarte, onde hoje fica a faculdade de moda Anhembi-Morumbi. Todo o mundo que morava ali era meio getulista, tinha o seu Alberto, minha mãe falava “ele é ligado com comunista”, e ela era a melhor amiga da mulher dele. Ela falava “sou amiga, mas não vou no Panela Vazia”, ela achava feio ir a manifestação [Panela Vazia: movimento popular apoiado pelo PCB, Partido Comunista Brasileiro, na década de 1950]. Minha mãe tinha ascendido um pouco de classe social quando casou com meu padrasto.

E você ia ficando de esquerda.
Quando perguntam, me lembro da minha avó [materna]. Os italianos faziam o brodo, um caldo, com legumes, e punham um pedaço de carne pra dar o gosto. Minha avó punha uma asa de frango, daí dizia pro meu avô:
Cesar, a asa é da menina.
Era pra mim porque eu era criança. Essa avó nunca saiu da minha cabeça. E também, pra ganhar um pouco mais, sábado e domingo ela lavava roupa “pra fora”. Não existia máquina de lavar. Ela lavava pra classe média. Algumas pessoas já tinham carro. Lembro de ir entregar roupa com ela, pegando aquela trouxa num lençol, nas ruas do Ipiranga.

Você fez agora um flash-back, não?
Sim, isso foi dos meus quatro, cinco, seis anos, até minha mãe casar de novo. Mas essa minha avó foi uma das maiores influências que tive na vida. Com ela aprendi a lavar roupa, sei lavar roupa muito bem. Ela falava:
A sujeira sai no enxágüe.
Você pode lavar, esfregar, lavar, não adianta: a sujeira vai sair ao enxaguar, então não precisa fazer tanta força antes. E aprendi a fazer crochê, com ela e minha bisavó, dona Virginia, que morava com ela.

Antes de se alfabetizar.
Antes de aprender a ler e escrever. Quando fui pro curso primário, levei uma sacolinha de crochê, com o caderno e tal. Sonhava com uma mala de couro, como as outras crianças, só depois foi que ganhei. Minha mãe me ensinou a ler e escrever, em casa.

Rose foi para o colégio alemão Beatíssima Virgem Maria, fazer o curso primário. Tinha ganhado dois livros, A Princesa e a Cobrinha e Pato Donald na Escola. Quando a Madre Emanuela perguntou se alguém já tinha lido algum livro, Rose citou A Princesa e a Cobrinha, no que foi recebida com risos e risotas. Tinha sete anos. E ainda chupava chupeta, aliás um “bico”, que levava pra escola.

Você começou a segunda infância conservadora, não?
Totalmente. Em casa tinha um monte de chupeta, bico, porque tinha duas menores que eu, do padrasto com minha mãe. Eu já tinha a malinha de couro. Punha no chão, a chupeta lá. Eu baixava, dava uma chupada no bico [risos e mais risos]... a madre nunca falou nada, e fui a primeira da classe, já sabia ler.

Dos dez irmãos que vocês viraram, nenhum outro se tornou ativista?
Não. Cada um levou sua vida. Gosto deles, e de toda maneira era difícil aceitar minha mãe, quase trinta anos mais nova que o pai deles.

Quando você se percebe “diferente”?
Foi na escola, já adolescente. Eu usava o vestido “brigitte bardot”, com alcinha no ombro, como todas, o bordado no ombro. Gostava de desenhar. Lembra as “garotas do Alceu”? Meu pai trazia também O Cruzeiro pra casa. Eu lia. E desenhava as garotas do Alceu. Queria ter uma bolsa com batom e cigarros, como a bolsa que o Alceu desenhou uma vez. Tinha uma vizinha, dona Idalina, costureira. Eu desenhava e ela fazia meus vestidos, das minhas irmãs.

Ia ser modista...
Meu sonho era trabalhar na Última Hora. Nem sabia o que era ser jornalista. Eu lia do começo até o fim, minha mãe chamava pra jantar, eu não ia.

Você então despertou para o mundo pela porta do jornalismo – a Última Hora era de um grande jornalista, o Samuel Wainer.
É, e eu sabia tudo da Última Hora, do logotipo azul, meio manuscrito. Eu tinha 16 para 17 anos quando meu padrasto teve o primeiro enfarte. Minha avó dizia sempre “fez catorze anos, tem que trabalhar”. Então resolvi procurar emprego. Fui no Shopping News, na Álvaro de Carvalho, perto da Abril, me perguntaram se eu conhecia as revistas da Abril. Tinha uma vaga na Intervalo. Fui lá e me puseram para fazer a programação de televisão, naquela época era Tupi, Record e o Canal 5 que depois virou a Globo. Eu tinha que atualizar os horários, os filmes da semana. O chefe de arte era o Adalberto Cornavaca; o redator era o Fernando Morgado; o repórter, o Abrão Berman; o fechador, o Carlos Coelho.

Isso era 1964.
Isso, você estava na Quatro Rodas. Vi o golpe já trabalhando na Abril. Já apaixonada por aquele negócio. Fui com o Abrão até o Teatro Municipal, vimos aquela marcha “com Deus”...

Vésperas do golpe, 19 de março, uma quinta-feira. Você já tinha ideia do que estava acontecendo?
Tinha. Meu irmão mais velho, aquele que tinha a idade da minha mãe, falava “esses filhos da puta vão dar um golpe”. No dia do golpe, meu pai ficou desesperado, ouvindo rádio sem parar. A gente sabia que era contra o Jango, contra tudo aquilo que a gente era, sindicalismo. Me lembro bem do discurso do Lacerda no dia primeiro de abril.

“Almirante Aragão, não se aproxime, senão eu te mato com o meu revólver!”

Ouvi na sala de casa, junto com meu irmão. Eu já tinha bastante noção. E também ali eu tinha conhecido a figura do Paulo Viana.

Ele era do Partido Comunista.
Do Partidão. E eu me apaixonei inteiramente. Eu tinha 18 anos, ele 32. E passei a me interessar por várias outras coisas, inclusive sexo. Eu li uma matéria na Claudia, sobre a pílula, e passei a tomar. O Paulo trouxe pra mim. Ele todo dia me ligava, “você tomou a pílula?” (Risadas.)

Ele tomava conta de você.
Tomava. Era mais velho. Outra coisa que minha família achava esquisito é que ele era desquitado. Ele queria casar. Trabalhava na Distribuidora Abril. O Cícero Viana, irmão mais velho dele, era dirigente do Partido. E com o golpe eu passei a ter contato com clandestinidade, reuniões, almoços clandestinos para arrecadar dinheiro. Namorei o Paulo até os vinte anos. Nesse meio tempo, eu fui parar no Shopping News, e lá fico conhecendo o Hermínio Sachetta.

Trotskista.
Fiquei então conhecendo as diferenças, entre trotskistas e stalinistas. Falei pro Sachetta: eu quero ser jornalista. De verdade. “Ah, que bonitinha, eu vou te dar umas leituras.” Falei “meu sonho é trabalhar na Última Hora”, “o quê?!, eu não vou deixar você ir trabalhar com aqueles cafajestes”, ganhei emprego no Shopping News, e acho que foi quando aprendi a escrever.

Para jornal, não?
É. Até hoje aplico coisas que o Sachetta me ensinou. Era bravo e ao mesmo tempo doce. Ele rasgou minha matéria.

“Você pode fazer melhor, faça de novo.”

Fui chorar no banheiro, era menina. Tinha outra moça, a Urquiza, contou pra ele, e ele veio “ai, filha, jornalismo é assim mesmo”, depois fiquei sabendo que o Remo Pangela fazia a mesma coisa na Última Hora. Jogava máquina de escrever no chão. Era “folclore” no jornalismo. Passei a escrever com cópia, punha papel carbono, pra poder aproveitar dados se ele rasgasse. Rasgou matéria minha mais umas duas ou três vezes. Ele descobriu a história do papel carbono, falou “danadinha, hem, me enganando”. E me deu uma matéria inesquecível, entrevistar o Anselmo Duarte, que estava estreando Vereda da Salvação, da peça do Jorge Andrade, maravilhosa. Pra isso, eu tinha de ir ver. Pensei “que profissão do cacete essa, ainda vou ao cinema”. Ele me deu o convite e fui à pré-estreia. Uma festa chiquésima. O lançamento foi em Marília.

Minha cidade natal, tinha um cineclube ativo lá.
Nós fomos de trem, eu achava o máximo, a maior aventura do mundo, eu contava pras colegas do Beatíssima, elas não acreditavam. As meninas de colégio de freiras eram educadas pra casar, saber servir a mesa. Tinha uma, madre Vitalina, ensinava trabalhos manuais, ela era chique, entrava na sala falando “eu espero estar falando para moças da sociedade”. Tinha aula de etiqueta, puericultura. A freira falava: “Um dia, porque sim, vocês vão receber suas amigas para um chá.” E punha a mesa para um chá. Tinha aula de como servir peixe, festa pra muita gente, e aí um dia eu consegui escrever uma matéria que começava assim: Um dia, porque sim, ele vai convidar você pra jantar (risos).

Alguma dessas colegas se destacou?
Tinha uma, maravilhosa, bonita, genial, Ana Maria Galvão Guimarães. Gostava de escrever e de desenhar, como eu. E virou jornalista como eu. Era mais moderna. Quando terminamos o curso, fomos todas ao fotógrafo, e depois da foto tiramos o distintivo, a meia três-quartos, pra ninguém saber que a gente era colegial. Minha adolescência então se misturou com jornal, e continuei amiga de muitas dessas moças.


Você parou a história do Anselmo Duarte no meio, quando viajou para Marília com outros jornalistas e a trupe do Vereda da Salvação.
Sim, no trem ia a Edla Van Steen. Escritora – eu jamais me atreveria a partir pra isso, tinha medo de dizerem você não dá pra isso. O que me deixou gente grande foi a matéria com o Anselmo Duarte. O Pagador de Promessa eu tinha assistido [Palma de Ouro em Cannes, 1962]. Eu tive de pensar. Pensar na arte, e eu metida nesse meio, e escrever algo para que as pessoas lessem. Me apavorou um pouco, mas o Sachetta falou “todo o mundo fica assim, você vai fazer direitinho, e nós vamos fazer juntos”. Escrevi, escrevi, ele falou “o que é que você está escrevendo tanto?”, falei “ah, não consigo chegar no fim”, e ele “é porque já passou o fim e você não percebeu” (Risos.) É verdade! “Procure o fim, que você já fez.” Ele falava assim:

“A matéria que não tem fim, terminada está.”

Outra coisa. Fazer o título em tantos toques. Era considerado o máximo da arte. Quem fazia era um italianão, chamado Dante, cunhado do Rubem Biáfora [1922-1996, crítico de cinema do Estadão]. Aprendi a fazer título com o Dante, quase na brincadeira. “Vamos fazer duas linhas de 42 toques”, e fazíamos. “Vamos descer na gráfica”, me lembro do seu Nelson, e o linotipo, ele lá num teclado, e a letrinha de chumbo caía não sei daonde. Eu aprendi sem precisar estar na Folha, no Estadão. Eu queria a Última Hora, adoro até hoje jornalismo popular.

Você conseguiu chegar lá?
Não. Morria de inveja. Quando estava na Folha da Tarde, ia lá xeretar, tinha o Esnider Pizzo, o Barrinhos [Flavio Barros Pinto].

Nem era mais do Samuel Wainer, ele tinha vendido pra Folha [comentou-se na época que por 6 milhões de dólares].
Não, mas pra mim havia aquela mística.

E o romance com o Paulo Viana?
O Sachetta me ajudou a terminar, porque falei pra ele, um dia que cheguei chorando, “ele bebe sem parar, eu não aguento”, ele falou “você é muito menina pra aguentar isso, comece a pensar em levar sua vida independente”. Ele sabia da ligação com o Partidão e disse “eu vou te dar outras leituras”, e o primeiro livro que ele me deu foi A Nossa Moral e a Deles, do Trotsky. Pra mim foi interessante, por causa da situação que eu estava vivendo em casa, meio clandestina, ninguém sabia que quando eu falava que ia dormir na casa de alguém eu dormia na casa do Paulo, que eu cozinhava pra ele, que eu tinha medo de engravidar, que eu levava uma vida como mulher dele, tudo isso era escondido em casa. Eu mentia que precisava trabalhar até tarde. E me sentia mal. Então acabei com o Paulo. E comecei a namorar um cara que era o contrário, o Ciro Queiroz, um sujeito reacionário, mas por que namorei ele? Porque vinha da Última Hora.

Eu era apaixonada pela Última Hora.

O Ciro contava histórias do Josimar Moreira, de todo aquele pessoal que eu gostava.

O que fazia o Ciro?
Era repórter, veio trabalhar na Intervalo. A gente comia naquele bar, o Bar do Léo, na esquina. O Ciro saiu e foi trabalhar na Folha da Tarde com o Miranda Jordão, que ele conhecia da Última Hora. Continuei no Shopping News, eu era competente, fazia várias colunas, Cuide do Junior, Dia-a-dia da Dona de Casa, de celebridades femininas, o Sachetta me punha pra traduzir revistas italianas, Oggi, Gente, minha tia Madalena me ajudava. Coisas da moda. Quando apareceu aquela modelo Twiggy, o Sachetta perguntou “o que você acha dessas esqueléticas?”, e eu era magrinha, magrinha. “Eu acho bonito”, falei, e ele gritou “bonito nada, é horrível!”, ele escreveu uma matéria dizendo que a Twiggy lembrava mulher sem saúde. Fiz reportagens com Aparício Basílio da Silva, que tinha a butique Rastro na Rua Augusta, o Dener, o Clodovil. Trabalhavam lá quando cheguei o José Maria do Prado, o Esdras do Nascimento, o Franco Paulino – o pessoal chamava “a corja”, eles eram engraçados, e eu era a única mulher nisso tudo. No começo de 1968 fui trabalhar na Folha da Tarde.

Aí entra o Clauset na sua vida.
Ele era o meu editor. Uma moça me mandou outro dia uma matéria que fiz sobre a entrada das guitarras nos festivais, com Os Mutantes. Matéria de página inteira eu já fazia.

Você estava com 22 anos.
Já, eu sou de 12 de fevereiro, aquariana.
                                                       Arquivo pessoal
Visionária, olha lá na frente.
Ainda bem: tudo é lucro. Fiz matéria sobre o Hair [peça badalada na época], com a Sonia Braga. Ela tinha feito uns testes de fotos com o Lew Parrela, na Abril, e não passou! Fiquei amiga dela. A Sonia namorava o Abrão Berman, era linda. Trabalhava num bufê, na Avenida Faria Lima. O teatro estava com muito vigor, a Ruth Escobar trouxe o Victor García pra dirigir O Balcão, do Jean Genet. O Altair Lima montou o Hair no Teatro Aquarius. Eu circulava por esse mundo. Na tevê, cobria novelas – vi a Cacilda Becker fazendo novela com o Sérgio Cardoso aqui na TV Tupi. Nesse dia conheci o Sérgio Sister, garoto, cobrindo novela pra onde? Pra Última Hora. Entrevistei o Benjamin Catan que fazia o TV de Vanguarda, o Geraldo Vietri, TV de Comédia.

E tudo era feito ao vivo!
Era a época dos festivais já acabando, não?
Cobri todos, A Banda, Chico Buarque, Geraldo Vandré. E o Clauset inventou uma seçãozinha, FUJA, a gente virou crítico, ia ao cinema, fazia uma resenha do filme, se não gostasse era FUJA, ou então NÃO PERCA, ou PODE VER. O Clauset escrevia muito bem. Quando pensei em namorar ele, contei pro Frei Betto, era chefe de reportagem na Folha da Tarde. Ele achou um barato, eu falei “mas tenho de terminar com o Ciro”, “é, tem”, fomos comer uma pizza no Micheluccio, na Consolação, e eu comuniquei que estava tudo acabado. E me senti muito bem, porque ia namorar o Clauset.

E você continuava lendo bastante?
Ah, que nem louca. Mais tarde, no meu julgamento, o promotor, pra dizer que eu era subversiva, falou que eu tinha muitos livros em casa...

Trotskismo?
Não, não, eu achei o Trotsky avançado, e tal, mas já tinha uma formação sólida de outro lado. E também de trabalhismo. Quando o PT apareceu, nossa! Entendia tudo! Quando o Lula surgiu.

Um partido de trabalhadores.
Sim, estava tudo lá, o que eu sabia, o que eu tinha visto: juntava o socialismo, com as condições de trabalho, imagine, fui correndo pro PT. E quem me convidou foi o Sérgio Sister. Eu encontrei o Sister a vida inteira. E o Alípio Freire também. A gente sempre trabalhou meio na paralela, mas sempre juntos. O Sister é um grande artista plástico, o Alípio também é muito bom no desenho, na poesia, na militância política. E eu, menos talentosa, também faço desenhos. Na casa da minha mãe, chegava tarde do jornal, fechava a porta da cozinha pra não incomodar ninguém, e ficava desenhando.

O que você desenha?
Gente, caras de pessoas. No colégio de freiras, eu tinha notas baixas de comportamento, uma vez tirei quatro! Porque fiz caricaturas das colegas, passava por baixo da carteira, e porque passei um desenho pra uma colega, fiz um, dei pra ela, depois fiz o meu. A freira viu, nós duas tiramos zero. Também não podia pintar as unhas. E eu sempre fui vaidosa, porque minha mãe era.

Minha mãe até hoje briga comigo porque estou sem batom.

Então, retomando, você vai casar com o Clauset.
Aí, casei com o Clauset. Mas antes fiquei grávida, no reveion de 1968. Sei porque o Cacá nasceu em setembro de 69. Mas eu queria casar, e ter muitos filhos. Meu pai queria que fosse na igreja. O Clauset trabalhava até altas horas, fechando o jornal, e eu ia no curso com o Cláudio Vergueiro, fazendo de conta que era meu noivo. O padre ensinava como entrar na igreja, que o amor tem de ser total. Casei na igreja de São Domingos. Mas aí o Betto começou a ser procurado. Foi terrível.

Tinha havido o Ato Institucional 5, em 13 de dezembro de meia oito.
Sim, veio censor pra redação. Aliás queria recuperar uma Folha da Tarde que a gente falou besteira do começo até o fim, matérias sem pé nem cabeça, contando que o Costa e Silva cantou pra rainha Elizabeth:

God Shave the Queen, Deus Barbeie a Rainha.

[O hino britânico é God Save the Queen, Deus Salve a Rainha, o trocadilho foi feito com o verbo “shave”, barbear.]

Nunca soube se tudo foi verdade, quem pode confirmar é o Ricardo Gontijo, ele fechou este número com o Penafiel. O Jornal do Brasil parece que também fez umas gracinhas.

E os estudantes vinham protestando, e os militares caíram em cima também.
Eu cobri o movimento estudantil. Conheci o Zé Dirceu, ficamos amigos. Um dia entrei na sala na Faculdade de Filosofia da Maria Antônia [QG do movimento estudantil em São Paulo na época]. Estava escrito na lousa: “Fora imprensa burguesa”. Falei pra ele: eu vou sair, você apaga pra eu poder entrar, porque... o que é que eu vim fazer aqui? Ele lembra até hoje. Ibiúna eu não fui [cidade perto da capital paulista em que se deu um congresso da UNE, União Nacional dos Estudantes, desbaratado pela polícia, com quase mil presos].

Amancio – Eu fui com o Zé Maria, foram presos de madrugada.
Havia fotógrafas, mulheres, a Tânia Quaresma, a Makiko Kiishi, japonesa, ou oriental, ela foi importante na minha vida.

A rainha Elizabeth tinha vindo ao Brasil na época, não?
Sim, a gente cobriu, tinha de ir de “tailleur”, salto alto e luva branca. No segundo dia, a luva estava toda preta, a gente virava do avesso. Um ato que eu cobri foi a rainha inaugurar a pedra fundamental do MASP [Museu de Arte de São Paulo]. E duas loucas vieram de minissaia, a minissaia lançada um ano antes, em 1967, pela Mary Quant. As duas malucas vestidas com um vestido tubinho que era a bandeira inglesa. Foram retiradas, por “ofensa a país amigo”.

Você só cobriu a vinda da rainha?
Não, o Frei Betto me pediu pra fazer uma matéria de ficção: a rainha entrevistada pela Hebe Camargo. A Hebe falava “rainha! Olha pra cá! Ela não é uma gracinha?”, era um programa no Teatro Record. Ela perguntava “rainha, o que a senhora acha do amor livre?, e do amor na Suécia?, o que a senhora acha da minissaia?”, a rainha não conseguia responder nenhuma pergunta, e já tinha “merchandising”, a Hebe parava ao lado da geladeira, “gente, vocês precisam ter uma Vitória Régia”, e o Paulo Caruso fez uma charge: a rainha, a Hebe e a geladeira, e a Hebe falando “gente, ela é bisneta da Vitória Régia”. A matéria terminava assim: “Olha, gente, pena que ela não veio de coroa, manto, cetro e tudo, porque aí sim vocês iam ver uma rainha de verdade”.

Era a gente, os jornalistas, em confronto com a censura.
Foi um período muito bonito, o jornalismo formava uma resistência. Qualquer coisa que você fizesse tinha um sentido maior para você mesmo e para os outros. E a Folha da Tarde, não porque a empresa tivesse qualquer simpatia pela esquerda, era um pouco mais esquerdista.

Mais do que a Folhona.
Do que a Folhona. A Ùltima Hora era trabalhista, para aposentados, Notícias Populares era policial. O Frias [Otavio Frias de Oliveira, dono da empresa] dizia assim: “Ué, é mercado, eles compram jornal, pra nós tá bom.” Depois ela virou um jornal de polícia.

Jornal “da” polícia.
É verdade. Depois do AI-5, eu escrevia o horóscopo, eu e o Cláudio – a gente se dava bem, aliás ele foi padrinho do meu casamento. Morríamos de rir fazendo o horóscopo. E o pior de tudo: o censor censurava o horóscopo! (risos) A gente botava qualquer besteira, ele censurava...

Eles pensavam que era algum “recado”.
Eram dois censores. O mais velho era o que mais riscava, com aquele pincel atômico.

Wilma Amaro intervém – Eu também fiz o horóscopo, punha assim: Dia bom para fazer greve. Dia ótimo para protesto dos trabalhadores. Eram só recados contra a ditadura, os militares. O editor, o Alberto Helena, nunca lia. Um dia o Frias leu ou alguém denunciou, ele me pegou pelos colarinhos, me xingou tanto, “sua louca, o que você está fazendo”. Levaram três meses para perceber.

Ainda não havia tanta gente fazendo horóscopo “de verdade”.
Só mais tarde é que apareceram os astrólogos, se levando a sério. Mas a gente tinha um livrinho com as características dos signos. Havia uma polícia, a Rudi. O Cláudio pôs no Escorpião, cuidado que a new Rudi quer pegar você. O censor fez um discurso, “que new Rudi?, a Rudi é uma só”, e cortou. Um dia teve lá um tumulto.

Com os censores?
Não, era o pessoal da Excelsior. A ditadura não tirou só a Panair dos Simonsen e deu para a Varig. Tirou a TV Excelsior dos Simonsen e deu para a Folha, dentro daquele incrível projeto de “integração nacional de comunicações”.

Deram pra Folha? Não foi pro Roberto Marinho?
Primeiro pra Folha. O Carlos Zara [ator] subiu numa cadeira e fez um discurso, a Folha atrasou os cachês, eles ficaram penduradíssimos, gravavam novela acho que na Vera Cruz [estúdio de cinema]. Estava a Leila Diniz, David José – o Pedrinho do Sitio do Picapau Amarelo da minha infância, na TV Tupi. E vários outros. Ficaram marcados. A Folha maltratava muito eles. A Folha não sacou: o grande projeto, que a Time-Life ajudou a fazer no Rio, era juntar um grande jornal com uma tevê e dominar as comunicações montando uma grande rede nacional. Foi feito em seguida com a Globo. Isso no começo de 1969, a Globo ainda não havia penetrado em São Paulo, só no Rio era mais popular.

O Jornal Nacional nasce só no fim dos anos 1960.
Na prisão, me lembro, em 1970, deram televisão pra gente ver a Copa do México. E víamos o Jornal Nacional.

Você foi presa quando?
Em 1969, novembro, depois que o Cacá nasceu.

Mas o que você estava fazendo de “grave”?
Nada especial. Claro que o Paulo Viana era a ligação mais política que eu tinha, e aí o Cícero Viana é fundador da ALN [Aliança Libertadora Nacional] junto com o Marighella. O Betto entrou na clandestinidade, nem fez meu casamento, mandou sermão por escrito. De repente, o Betto passou lá em casa, ficou umas semanas. E os frades dominicanos faziam reuniões em casa.

E com quem? Com o Carlos Marighella.

Foi isso que chegou na polícia.


E o Clauset? Era ligado à ALN?
Não. Éramos o quê? Um apoio logístico. Por exemplo, o Marighella precisava de documentos novos. Eu levei ele na casa do Penafiel para fazer.

Isso com você grávida.
Ah, que gravidez gostosa. Eu era feliz. Morava em Pinheiros. Queria ter filhos. Acho que a mulher tem um momento que ela quer. Havia muito movimento lá em casa, era a formação da ALN. O pessoal fez o sequestro do embaixador lá no Rio. O Marighella dormia algumas vezes em casa. Conversas maravilhosas. Ele me chamava de “Filhinha”, não tinha nome. E um dia ele fez treinamento para o parto sem dor comigo, no tapete, “fica de quatro”, “levanta a perna, a outra”, “respiração cachorrinho”. Ele era um visionário. Eu perguntava: o que é que vai acontecer se continuar assim? Ele dizia: o povo vai começar a invadir fazenda, matar o gado pra comer, pegar seu pedaço pra plantar – ele vislumbrou o MST. Dizia que a luta tem que ir pro campo, era a intenção da ALN. Os outros eu conheci na prisão. Só conhecia os padres e o Marighella.

E o Cacá nasce nesse período?
Eu tive um parto complicado, com rompimento de bexiga. Fiquei vinte e poucos dias no hospital. O Clauset falou “quanto você sair daqui, acho melhor a gente ir embora do Brasil”. Tinha caído todo o mundo, e eu não sabia nada no hospital.

Quanto o Cacá nasceu?
Dia 30 de setembro.

E o Marighella caiu...
Quatro de novembro. Eu saí do hospital dia 25 de outubro. Aí um dia toca a campainha, e quem é? Esquadrão da Morte.



Próxima enfiada – Parte 2
Presa pelo delegado Fleury, o herói da ditadura militar – Torturador e membro do Esquadrão da Morte se masturba na frente de Rose nua – “Terroristas eram eles”

Um comentário:

  1. Localizei através de seu blog, uma grande amiga de infância, a Jornalista Rose Nogueira. Gostaria de saber se seria possível contatá-la por email.
    Meu email: marigsilveira@hotmail.com
    Grata
    Ignez Azambuja

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