quinta-feira, 8 de abril de 2010

ENTREVISTONA / JESSIE JANE




“A raiz da corrupção que aí está é o golpe militar de 64”
Por Gabriela Gonçalves Cardoso
Para o jornal A Verdade, que nos autorizou a publicação
Jessie Jane Vieira de Sousa é uma das valentes mulheres que foram à luta armada contra a ditadura militar instaurada no Brasil em 1964. Aos 21 anos, em 1º de julho de 1970, ela com três companheiros da Aliança Libertadora Nacional, ALN, sequestraram um Caravelle da Cruzeiro do Sul que partiu do Galeão, Rio de Janeiro, para Buenos Aires. Em troca do resgate de 34 passageiros e 7 tripulantes a bordo, pretendiam exigir a libertação de 40 presos políticos e rumar para Cuba. Imaginavam repetir a façanha de militantes da ALN e MR-8 que, no ano anterior, sequestraram o embaixador americano e o trocaram por 15 presos, levados para o México. Inexperientes, ordenaram ao comandante do voo que voltasse ao Galeão. Tropas da Aeronáutica, comandadas pelo brigadeiro Burnier, invadiram o avião e Jessie com os companheiros, menos um metralhado ao reagir, acabaram presos e barbaramente torturados – “o Burnier, que é um facínora, me torturou de uniforme, com o uniforme de brigadeiro”, declararia Jessie (na foto acima) vinte anos mais tarde ao jornalista Luiz Maklouf.
Hoje professora do departamento de história do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), que dirigiu de janeiro de 2006 a janeiro de 2010, Jessie possui graduação em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestrado pela Universidade Estadual de Campinas e doutorado em História Social pela UFRJ.

Jessie é filha de um contador e pequeno fazendeiro mineiro e uma professora, de esquerda os dois, que moravam na Vila Ré, periferia de São Paulo, quando se deu o golpe de 1º de abril de 1964 e Jessie estava com 14 anos. Acostumou-se a ver os pais receber militantes perseguidos como Toledo e Carlos Marighella (na foto abaixo), da ALN.

Ficou presa nove anos após o frustrado sequestro do Caravelle. Em 1972, com autorização judicial, casou e, em 1976, nasceu sua filha Leta. Libertada, morou em Volta Redonda, onde construiu o arquivo do movimento operário. De 1999 a 2002, foi diretora do Arquivo Público do Rio de Janeiro, onde estão os documentos do antigo Dops, Departamento de Ordem Política e Social. Publicou artigos, escreveu dois livros.

Ela fala aqui sobre a situação do país e da universidade brasileira.
Qual a sua avaliação sobre o golpe de 1964 e suas consequências para o povo brasileiro?
Foi uma das coisas mais dramáticas da história do Brasil. A sociedade vivia um momento de ascensão, avanço da esquerda, dos movimentos sociais – o golpe interrompeu. Não só do ponto de vista dos processos políticos que foram ceifados. As consequências aí estão colocadas: corrupção, violência, tudo isso tem a raiz ali.
                                           Foto Amancio Chiodi
Para a universidade, o que representou a ditadura?
A UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro] viveu isso de forma grave. No curso em que dou aula, História, vários professores foram expulsos, houve intervenção, criou-se um vazio, e depois veio o amordaçamento da discussão. Acho que a universidade é hoje muito mais distanciada das questões nacionais. Não tem uma interlocução com a sociedade, sua presença na sociedade é quase nenhuma. Não há projetos nacionais sendo gestados, tudo consequência desse esvaziamento causado pelo golpe. A universidade pré-64 tinha menos jovens. Era, digamos, mais elitista. No entanto, era um espaço de disputa política muito mais ativo. Hoje, vive um marasmo político absoluto. Diria até que é um espaço do conservadorismo, principalmente na área das humanas.
     Presidente Médici revista a tropa / reprodução revista Manchete

Por que até hoje os torturadores não foram punidos no Brasil?
Por vários motivos. Primeiro porque há uma cultura política no Brasil de sempre as transições vir de cima. Tem um conchavo entre as elites e chega-se a um acordo. E aí tudo o que passou pertence ao passado, e o passado fica petrificado. Isso foi feito na história do Brasil inteira, e a tal da transição democrática foi feita com isso. Tanto que se diz: “Quem foram os personagens da transição?” Tancredo. Até Sarney é personagem. E aí teve um acordo sinistro na verdade, de silêncio entre os golpistas, aqueles que eram parte do golpe, a tal da oposição democrática e até setores da esquerda foram parte desse silêncio. O movimento social não conseguiu avançar, e aí já estou me referindo ao movimento de defesa dos direitos humanos. Não consegui construir forças para produzir uma nova memória, porque a memória que se produziu é uma memória de que houve uma anistia, de que todo o mundo foi anistiado, o que não é verdade. Quando Lula assumiu o governo, vários setores acharam que, com ele, iríamos avançar nessa questão, mas Lula não tem nenhum compromisso com isso. Acho que, nos últimos dois anos, até avançou um pouquinho com Tarso Genro no Ministério da Justiça e com Paulo Vannuchi na Secretaria de Direitos Humanos, mas estamos muito longe disso. Tenho dúvidas de se ainda vamos conseguir punir os torturadores, mas tenho esperança.

O que fica de lição, para o povo, da luta contra a ditadura?
Há uma coisa importante, principalmente para minha geração: é um pouco da questão da democracia, entendeu? A gente tinha uma ideia diferenciada sobre a discussão democrática, a gente sempre pensava na democracia como democracia liberal do século 19, aquela do voto, que a gente chamava de democracia burguesa, e é mesmo, não? Faz parte da revolução burguesa. Só que, quando você vive num regime ditatorial, quando não tem nenhum espaço de expressão, essa democracia burguesa é importante, e conseguir isso foi importante. Porque ela amplia a possibilidade de você construir uma democracia real. Quando todos os segmentos da sociedade conseguem espaço para se organizar, para se expressar, você vai alargando – pode alargar ou não, não é um resultado inevitável. Acho que é um pouco o que o Brasil tem tentado fazer ao longo desses anos, mas estamos muito aquém daquilo que deveria ser uma democracia real, em que todos tivessem acesso a tudo. Mas de qualquer forma acho que a luta contra a ditadura deu algumas lições, principalmente a ideia de que quanto pior, é pior mesmo, não é “quanto pior, melhor”.
Qual o papel da luta armada para a derrota da ditadura militar?
Analisar a luta armada é supercomplexo, até porque você tem uma interdição da história política brasileira em discutir essas coisas, e aí um discurso pacifista sempre tenta obstruir essas possibilidades. Do ponto de vista histórico, você não tem nenhuma mudança de regime, de modelo, que não tenha sido pela luta armada. Nenhuma classe entrega o poder a outra sem haver uma revolução ou qualquer tipo de rebelião. Nunca aconteceu e provavelmente não acontecerá. O Chile tentou isso e deu no que deu. Isso é uma experiência histórica que os povos viveram e, até hoje, não conheço outro modelo. Se alguém conhecer, me conte. No caso do Brasil, é preciso contextualizar a opção da luta armada naquele momento. Alguém assim falando hoje parece fazer parte de um bando de lunáticos que resolveram... bem, mas penso que a luta armada tem, teve um papel na luta contra a ditadura, mesmo que seja um papel de exemplo.
   Médici levanta a taça da Copa em 1970/ Reprodução revista Manchete
Este ano foi divulgado um encontro em que o general Médici, à época presidente do Brasil, e o presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, discutiram a derrubada do governo Allende, em 1973. 
[Salvador Allende, um socialista eleito pelo voto presidente do Chile e vitimado por um golpe militar que o matou, liderado pelo general Augusto Pinochet, mancomunado com Washington e por Washington financiado.]
Em junho do ano passado, houve um golpe militar em Honduras e muitos acreditam na participação dos Estados Unidos no episódio. Como vê a participação dos Estados Unidos nos golpes militares na América Latina?
Bom, isso tudo está documentado. É documentação do Departamento de Estado, não sou eu que estou dizendo. Hoje se conhece toda a intervenção de fato dos Estados Unidos. Inclusive um colega meu, o Carlos Fico, acabou de lançar O grande irmão: da Operação Brother Sam aos anos de chumbo, que contém documentação do Departamento de Estado que mostra a presença dos Estados Unidos na articulação do golpe no Brasil, no Chile. Esses golpes todos na América Latina, desde os anos 1950, e as intervenções na América Central, a presença do governo americano... O problema dos Estados Unidos é que, quando está falando de governo norte-americano, você está falando de empresas, porque aquilo é um Estado empresarial, de interesses econômicos, políticos e ideológicos, e, naquele momento, no contexto da Guerra Fria. Hoje também há a presença dos Estados Unidos, porque se sabe que o governo Obama é dividido. Há grandes personagens do Departamento de Estado que têm empresas em Honduras. Há um artigo interessante no Le Monde Diplomatique falando sobre isso. Que as empresas, essas empresas bananeiras todas, são de americanos, gente do Departamento de Estado. E tem mais outro detalhe: há hoje na América Latina um desequilíbrio, digamos, na correlação de forças, porque há governos, não vou dizer de esquerda, mas governos mais populares ou mesmo que ficam do centro para a esquerda em quase todos os países. Na América Central você tem agora El Salvador, Guatemala... tem esse Zelaya, que não é nenhuma flor que se cheire, mas pelo menos é um dissidente da oligarquia. E o Le Monde Diplomatique fazia uma análise interessante, mostrando que o golpe militar em Honduras era um balão de ensaio desses setores dos falcões americanos com setores conservadores latino-americanos, dizendo “olha, se der certo quem sabe poderemos fazer isso em outros lugares”. Por isso acho que a reação do Hugo Chávez é importante porque ele sabe disso: está a Venezuela ali, a Colômbia que os americanos apoiam está ali... Na verdade, é a questão da geopolítica. As pessoas são ingênuas nisso. Esses setores empresariais americanos têm uma estratégia ao lado dos setores conservadores, e não é à toa que se vê como os jornais burgueses tratam isso. Está havendo um rearranjo da direita latino-americana. E daqui a pouco começam as eleições, e eles estão se rearranjando, Essa gente tem projeto, tem estratégia, e essa é sempre uma estratégia continental.

Que papel pode cumprir a universidade na conquista de uma nova sociedade?
Hoje? Nenhum. Os estudantes discutem questões muito pontuais. Mesmo esses estudantes da chamada extrema-esquerda são muito míopes, não têm uma plataforma de discussão de Brasil. É tudo muito primário, se resume em lutas quase que intestinas, não têm representação na massa estudantil. A maioria dos estudantes, hoje, chega aqui, estuda e vai para casa, e quer seu diploma para poder subir na vida. Não se tem um movimento de professores que tenha discussão além do corporativo – ou então cada um com seu projeto de pesquisa. Os funcionários são só corporação, só discussão de direitos. Deveres? Nenhum. Acho que nesse momento a única coisa que você pode fazer é formar bem seu aluno para ele ser um bom professor.
Como vê a atual situação do Brasil?
De forma muito pessimista. Os movimentos sociais estão quase todos cooptados pelo governo federal, uma central sindical absolutamente chapa-branca. Uma coisa que o governo Lula fez, a despeito de todas as coisas boas que foram feitas – e reconheço que o governo Lula é muito melhor do que o governo Fernando Henrique, evidente. Mas houve no governo Lula um esvaziamento enorme dos movimentos sociais. Hoje existe uma cooptação clara e evidente de lideranças de movimentos. Não vejo nenhuma autonomia nos movimentos sociais. Quem ainda tenta fazer algum discurso autônomo, mesmo assim muito fraco, é o MST [Movimento dos Trabalhadores Sem Terra], que está sendo criminalizado. Também o MST me parece que está, um pouco, vivendo assim sem rumo. Do ponto de vista sindical, o que vejo é uma coisa corporativa, esvaziada de conteúdos políticos mais relevantes, cooptação das centrais. A CUT [Central Única dos Trabalhadores] é chapa-branca. O resto já era mesmo. Um movimento estudantil também chapa-branca. Essas organizações que se opõem à UNE [União Nacional dos Estudantes] também não conseguem ter um discurso que pegue. Vejo aqui, os meninos vêm dizer um monte de abobrinhas, é uma coisa monocórdia, que não tem consequência porque, para poder atingir o conjunto dos estudantes, é preciso uma fala que tenha a ver com a vida das pessoas, não adianta querer... Então vejo o Brasil, hoje, com muitos problemas. Diferente, por exemplo, de um país como a Bolívia, que tem uma tradição de participação, de demandas, nós somos uma sociedade hoje muito acomodada nos nossos índices de país em desenvolvimento.

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