terça-feira, 8 de junho de 2010

DIÁRIO DE ESPANHA III

 L'Origine du Monde, de Courbet / Foto Amancio Chiodi, tirada 
no Museu d'Orsay 

Um close na origem 
do mundo 
ou
O quadro que virou 
uma novela

Por Mylton Severiano, 
traduzido e condensado 
de Octavi Martí en El País, Madrid, 
edição de domingo 6 de junho de 2010

Em 26 de junho de 1995, o Museu de Orsay, Paris, expôs pela primeira vez L'Origine du Monde (A Origem do Mundo), de Gustave Courbet, pintada entre 1865 e 1866, por 130 anos escondida e furtivamente contemplada por sucessivos donos. Uma imagem sem nome, sem título, vítima da pudicícia, irmãzinha da censura.
A história da tela vem à luz num relato de Bernard Teyssedre, A Novela da Origem, recém-lançado na França. Começa quando Jalil-Bey, embaixador turco en Paris, visita em 1866 o artista e lhe pede uma tela erótica. Jalil-Bey, depois que Courbet se recusa a vender uma tela escandalosa, Vênus e Psiqué, que já tem dono, e Les Dormeuses (As Adormecidas), também de tema lésbico, leva um quadro de 55 por 46 centímetros de uns quadris femininos com o púbis ao centro, um close na “origem do mundo”… O embaixador põe o quadro em sua sala de banho, atrás de um cortinado verde. E passa tanto tempo contemplando-o que sua mulher, enciumada, ordena que venda o quadro. O qual passa a pertencer a Jean Baptiste Faure, barítono da Ópera de París.
                             Foto Amancio Chiodi
Agora a obra de Courbet passa a viver escondida atrás de uma paisagem, um campo de neve, pintado pelo próprio Courbet. Até aí, poucos viram o quadro, que gerou versos de Gautier e esta assertiva de Edmond de Goncourt: "Um ventre belo como a carne de um Correggio."  Mas a mulher do cantor também ficou enciumada com a concorrente pictórica, que atraía amigos do marido para mirá-la.
En 1888, depois de passar por outros donos, a inominada chega às mãos de um marchande, De la Narde, que a exibe apenas a clientes de confiança, e nos fundos de sua loja.  Até 1912 nada mais se sabe do quadro, apenas se comenta que pertenceu a um governador puritano por fora e pervertido por dentro, a um ginecologista que o usava como propaganda e a um bordel.
En 1935, Charles Léger, especialista em Courbet, se refere pela primera vez à obra como L'Origine du Monde. Em março de 1944 os nazistas destituem Hodhy, seu “capataz” na Hungria, que havia levado a "coisa" para lá. O exército nazista demora tanto para avaliar se aquilo vale a pena saquear, que chega o Exército Vermelho e o coronel Tatastrov aplica as normas do realismo socialista: as socialistas por acaso nao têm aquilo? E o quadro se salva.
En 1955, Sylvia Lacan, protagonista de A Regra do Jogo, de Renoir (o cineasta), pede ao marido, o psicanalista Jacques Lacan, que lhe presenteie com L'Origine du Monde: por 1 milhão e meio de francos, é dela a “xoxota” famosa, que, para nao chocar vizinhos, amigos e empregados, passa a ficar pendurada na parede atrás de um nú abstrato pintado por um cunhado de Sylvia Lacan.
Resta a pregunta: quem abriu as pernas para Courbet pintar aquele sexo explícito? Joanna Hiffernan, amante do pintor. De todo modo, Joanna serviu durante anos para movimentar as divagações de Lacan sobre as diferenças "entre o objeto da pulsão, do fantasma e do desejo"; ou de suas conversas con Heidegger sobre "o real, a verdade e o autêntico", para concluir que "a olhada é a ereção do olho". 
Em 26 de junho de 1995, o ministro da Cultura francês, Douste-Blazy, faz o discurso de ingresso da tela nas coleções nacionais. Evita ser fotografado junto dela e se vale de opiniões ilustres.  Mas nao cita a frase flaubertiana de Courbet: "A boceta sou eu".
                                 Foto Amancio Chiodi

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