domingo, 24 de outubro de 2010

COISAS DE CÉREBRO E DE FÍGADO

José Fidelis manda texto de Roberto Buenno e o  blog do Myltainho&Amancio repassa para você


O cérebro muito próximo do fígado (ou: a vocação elitista dos vaidosos intelectuais medíocres)


Agosto de 1978. Plena efervescência da memorável campanha eleitoral cujo resultado levou ao fim do bipartidarismo imposto pela ditadura de 1º de abril de 1964 por conta da fragorosa derrota do partido de sustentação do regime militar. Um grupo de calouros da filosofia da PUC de São Paulo estava reunido num bar acolhedor da Alameda Santos, bem próximo de uma emblemática livraria, no bairro Cerqueira César.


Com um exemplar da Folha, um universitário entusiasta da candidatura de Fernando Henrique Cardoso (então candidato a senador na sublegenda do MDB; na outra Franco Montoro era candidato à reeleição) recebe uma ducha de água fria ao ouvir o discreto recado de um amigo do querido professor Florestan Fernandes, recém-chegado à PUC depois de mais de dez anos de aposentadoria compulsória na USP e docência fora do Brasil: "Vá devagar com o andor, meu jovem. Esse moço tem o cérebro muito próximo do fígado."


Antes, porém, é preciso registrar que, nessa época, a Folha de S.Paulo, em cujo time havia jornalistas de primeira grandeza como o saudoso Cláudio Abramo, Perseu Abramo, Nelson Merlin, Mino Carta, Newton Carlos, J.B. Natali, Osvaldo Peralva e Newton Rodrigues (entre outros), era, sim, um jornal de vanguarda, ainda que sob intervenção de Bóris Casoy, desde o trágico episódio em que, um ano antes, estivera envolvido Lourenço Diaféria com a sua malfadada homenagem póstuma ao sargento morto na tentativa de salvar uma criança do ataque de uma ariranha num parque em Brasília, e quando da "invasão" do coronel Antônio Erasmo Dias (o temido secretário de Segurança Pública de Paulo Egydio Martins) à redação para pedir a destituição de alguns "comunistas", entre os quais Abramo, Diaféria e Tarso de Castro (ele, Merlin e Fortuna eram os editores do emblemático Folhetim, ou o Pasquim da Folha, uma paródia do sisudo Suplemento Cultural do embolorado Estadão).


O movimento estudantil engatinhava, depois da avassaladora e sangrenta decapitação de sua vanguarda em todo o território nacional, sob acusação de subversão e terrorismo, não só por meio de mecanismos institucionais obscurantistas (como o AI-5 e os famigerados decretos 228 e 477, de triste memória), mas com a "ajuda" do Esquadrão da Morte (EM), do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), da Operação Bandeirantes (OBAN), da Tradição, Família e Propriedade (TFP), entre outras organizações nazifascistas protegidas pelo regime militar, além das execuções acintosas do DEOPS do nefasto Sérgio Paranhos Fleury, do DOI-CODI, do SNI, do SENIMAR etc.


Ao lado de Fernando Henrique Cardoso, que havia sido capa e personagem entrevistado nas amarelas das principais revistas e jornais semanais da época (obviamente à exceção das decadentes Visão, Fatos&Fotos, O Cruzeiro e Manchete, ostensivamente favoráveis à ditadura), aparecia um acanhado ex-presidente da UNE que o regime não havia permitido que fosse candidato naquele ano: José Serra. O pessoal do velho Partidão, hoje PPS (e que fazem parte da coligação "O Brasil pode mais"), cá pra nós, que na época era muito influente no movimento estudantil e na vanguarda do MDB, não morria de amores pelos dois (FHC e Serra), e, especialistas na arte da rotulação dos adversários potenciais, estimulavam rumores de que eles eram suspeitos de trabalharem para grupos ligados à CIA, até pelo fato de haverem sido bolsistas de instituições americanas em plena guerra-fria. E o motivo era óbvio (não para nós, jovens desinformados na época): tanto FHC quanto Serra vinham de outros setores da chamada esquerda nacional (este último um dos influentes ativistas da Ação Popular, grupo nascido no seio da Juventude Estudantil Católica).


Por essa razão, o entusiasta calouro "cabo eleitoral" de Fernando Henrique, retrucara indignado: "Por acaso, o senhor é ligado ao Partidão?" O sábio e ponderado professor da PUC (já beirando os 60 anos) jogou uma pá de cal na raiva do estudante: "Cuidado com o que fala. Mas, ainda que fosse, não iria dizê-lo, nem sob tortura, rapaz!" E para tranquilizá-lo, esclareceu por que havia feito a observação ao seu "inatacável" candidato: "Já ouviu falar de Enzo Faletto e de Alain Touraine? Ninguém melhor que eles para explicar a verdadeira personalidade desse professor, meu jovem. Mas há outro, também fora do Brasil, que pode lhe dar algumas pistas. Deste você deve ter ouvido falar, talvez horrores, mas injustamente. É Darcy Ribeiro, o grande idealizador da UnB."


Passados alguns anos, ainda sob a ditadura, num seminário sobre os povos indígenas, Darcy Ribeiro apresentava um sábio do povo Guarani, Marçal de Souza, assassinado pouco tempo depois em Mato Grosso do Sul (algo parecido ao assassinato de Chico Mendes, mas que ainda permanece impune). Sob pretexto de pedir um autógrafo num dos livros dele, o então recém-formado mas ainda entusiasta fã do suplente de senador Fernando Henrique "entra de sola" no assunto com Darcy: "Professor, como o senhor vê o professor Fernando Henrique?" O sincero mas habilidoso estudioso da realidade brasileira se saiu com essa: "Um acadêmico muito dedicado que trabalhou ao lado de Teotônio dos Santos no exílio. Não tive oportunidade de conviver com ele politicamente, mas o (Celso) Furtado está no mesmo partido e poderá lhe dar a resposta que procura."


Não foi possível. Mas quase uma década depois, qual não foi a sua frustração, quando, no segundo-turno de 1989, Ulysses Guimarães, Mário Covas, Leonel Brizola, Miguel Arraes, Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Waldir Pires e Celso Brant subiram no palanque de Lula, enquanto FHC e Serra preferiram ficar "no muro", a pedido do amigo Itamar Franco, candidato a vice-presidente de Collor, que havia convidado o sociólogo da Sorbonne para ser ministro de Relações Exteriores no futuro governo. Isso, aliás, pode ser comprovado pela explícita omissão desses dois tucanos na batalha pelo impeachment de Collor, tanto no congresso nacional quanto nas ruas, enquanto o veterano Ulysses, a despeito da idade e da ingratidão de expressivos setores da sociedade organizada, se posicionara ao lado dos caras-pintadas.


Mas foi no medíocre e entreguista (des)governo tucano de FHC-Serra, recheado de maracutaias e falcatruas de ruborizar José Dirceu (companheiro de Ação Popular de Sérgio Motta e José Serra), Orestes Quércia e até Paulo Maluf, que ficou evidente a advertência, em 1978, do hoje professor aposentado da PUC de São Paulo, amigo do saudoso Florestan Fernandes, de que todo cuidado é pouco com esses "meninos": venda por valor inferior ao lucro anual da Vale do Rio Doce; compra de votos para a adoção do instituto da reeleição de presidente no fim do seu próprio mandato e que já lhe permitia o direito de ser candidato a reeleição; abandono dos projetos sociais adotados por influência de Dom Mauro Morelli e de Herbert de Souza (Betinho) no governo Itamar Franco para dar origem ao vergonhoso Comunidade Solidária, produto da vaidade do sociólogo-presidente; escândalos como o famigerado PROER, para socorrer banqueiros falidos, além dos casos Salvatore Cacciolla e Daniel Dantas...


E se isso fosse pouco, Serra conseguiu superar seu mestre FHC: além de consolidar uma aliança espúria com órfãos e viúvas da ditadura (UDR, TFP, neonazistas e os extremistas do DEM), realiza uma campanha eleitoral insidiosa e antidemocrática, porque recheada de preconceitos machistas e fascistas, calúnias, anticomunismo (quando são eles os que têm o apoio dos que se arvoravam como os "únicos e verdadeiros comunistas") e total despolitização – um verdadeiro desserviço para nossa democracia recente, construída graças à generosidade e à coragem dos milhões de brasileiros e brasileiras anônimos, que, igual à Dilma, combateram o regime de arbítrio sem serem "profissionais" da política.


E o que dizer, então, depois de ver o canastrão do Serra se passando por "ético" do Rodoanel; por "protetor" da Petrobrás, do Banco do Brasil, do BNDES e dos Correios; por "pacificador" de meia-tigela, que provoca para posar de vítima (que atira a pedra e esconde a mão, o tempo todo); por "democrata" que não aceita opinião diferente da sua e por tal motivo demitiu Heródoto Barbeiro e Paulo Markun da TV Cultura, além de mandar a tropa-de-choque da polícia militar "dialogar" com os professores que reivindicavam direitos; por "beato" do pau-oco e do aborto mal-sucedido; por "vítima" da bolinha-de-papel e do rolo de fita crepe; por "engenheiro" de obras feitas; por "economista" do Plano Real (aliás, onde ele estava mesmo durante os governos Collor e Itamar?), e, pior, "pai" dos genéricos (o então deputado Eduardo Jorge é que foi responsável por sua instituição no tempo do então ministro Jamil Haddad) e do PRONAF (instituído no tempo do Itamar, quando era ministro da Agricultura Synval Guazzelli), bem como agora anuncia no horário eleitoral as obras em execução do PAC como sendo de seu programa de governo?...


Aí, sim, é que o hoje maduro profissional da filosofia veio entender por que FHC e Serra são de uma laia de pessoas cujo cérebro está muito próximo do fígado, pois, sua trajetória política mistura alhos com bugalhos e acabam pondo os pés pelas mãos. Mas o verdadeiro perigo é estar no caminho deles quando têm alguma obstinação, como a de chegar à presidência, pelo que são capazes até de se aliarem ao DEMO (e não é que o fizeram agora?), no afã doentio de chegar ao Planalto.


O detalhe é que eles se esqueceram de combinar isso com o povo brasileiro. Nas sábias palavras de Chico Buarque, com Lula "o Brasil não precisou falar fino em Washington e falar grosso com a Bolívia e o Paraguai". Daí por que a extrema-direita, mesmo contra sua vontade e sem botar muita fé, apoia Serra. Já quem os conhece, como o escritor e jornalista Fernando Morais, apoia Dilma. E a melhor explicação para essa conduta veio exatamente de Alain Touraine, anos atrás, quando disse que FHC não estava indo para a direita, mas, sim, estava em decadência. Quem os conhece, não os recomenda, pois, como intelectuais medíocres reproduzem o pior comportamento preconceituoso da elite decadente, como eles.


Roberto Buenno

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